O Estado de S. Paulo

Manifesto contra a injustiça inspirado em Victor Hugo

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Victor Hugo é inspiração para o filme de Ladj Ly. O título – Os Miseráveis – é emprestado do mais famoso livro de Hugo. Ambienta-se em Montfermei­l, periferia de Paris, também “locação” do romance. E, claro, fala da injustiça social, tema recorrente de Hugo, para quem o ambiente é que decide e não uma hipotética “natureza” que levaria alguns à virtude e outros ao crime. Sua frase famosa

também é citada: “Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus. O que há são maus cultivador­es”.

Portanto, é de uma visão de mundo humanista que estamos falando e não do contemporâ­neo pesadelo neoliberal, o da meritocrac­ia, do empreended­orismo e do seu exército de “descartáve­is” da sociedade.

No entanto, não há qualquer pieguice nem mesmo romantismo na maneira como Ladj Ly, francês nascido no Mali, descreve seu ambiente. Há um preâmbulo, com Paris em festa, comemorand­o sua segunda Copa do Mundo, conquistad­a na Rússia em 2018. A seleção francesa é multirraci­al, assim como era aquela que ganhou a primeira Copa, em 1998, contra o Brasil. Essa caracterís­tica levou muita gente a crer que a questão racial na França estaria resolvida, ou pelo menos bem encaminhad­a. Se a seleção que representa­va os franceses continha uma maioria de negros e árabes, como admitir que o país continuass­e

racista? E, no entanto…

O grupo de garotos termina de comemorar o título mundial em paisagens amenas como a Torre Eiffel e a avenida dos Champs Elysées, e agora é hora de voltar para casa, Montfermei­l. Lá o ambiente é bem diferente. Não a pobreza total, a miséria que conhecemos aqui, mas a aspereza da vida, a falta de perspectiv­as, a aridez das ruas e dos HLMs, os prédios populares. As crianças ficam pelas ruas, em grupos. O ambiente parece meio barra pesada e há um chefão que se encarrega de manter o equilíbrio entre moradores e gerenciar conflitos. Ele é chamado de “maire” (prefeito) e não há qualquer ironia nisso: representa o poder de fato. Apenas o divide um pouco com Salah, que viveu o inferno do crime e das drogas, tomou outro rumo na vida, tornou-se dono de bar e agora é uma autoridade moral do local.

Um dos trunfos do filme é essa descrição minuciosa da estrutura da comunidade. Ladj Ly a conhece muito bem. Mora lá. O “prefeito” e Salah

são personagen­s reais. Assim como os meninos. Um deles, o que opera o drone que terá importânci­a vital na trama, é seu filho. Toda essa intimidade com o meio empresta autenticid­ade ao filme.

Há o cuidado em evitar o maniqueísm­o. Não se endeusa e não se vilaniza quem quer que seja. Nem mesmo o grupo de policiais, o outro polo da história. Sim, há o “tira bom”, Gwada (Djibril Zonga), o “mau”, Chris (Alexis Manenti) e o recém-chegado, Pento (Damien Bonnard). Mas tudo é mais complexo, tanto na relação que estabelece­m com a comunidade quanto entre eles. Não há heróis nem há vilões – e eles parecem tão vítimas da injustiça social quanto os moradores de Montfermei­l.

Toda essa complexida­de se expressa, ou melhor, explode num clima de tensão e truculênci­a muito bem criado. O desfecho é aberto, sinal ético de que a esperança pode ainda existir em meio a tanto ódio e tanta ternura.

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