O Estado de S. Paulo

Estão queimando o seu arroz

Chefs paulistano­s criam pratos usando a técnica de fazer o socarrat, casquinha carameliza­da que se forma no fundo da panela. Parte mais disputada do prato foi populariza­da por chefs contemporâ­neos como Andoni Aduriz e Quique Dacosta

- Renata Mesquita

Tem no Komah na Barra Funda. O arroz bem tostadinho é cozido no caldo de porco com dashi, misturado com kimchi e servido com um omelete cremoso por cima. O contraste – crocante e cremoso –, combinado com a picância do fermentado de acelga, é a fórmula do sucesso do bokumbap, prato coreano elaborado pelo chef Paulo Shin.

As panelinhas rasas de ferro não param de sair da cozinha do Pipo com arrozes de sabores variados. Preparados com miniarroz em caldo concentrad­o no Josper, formam uma crosta no fundo da frigideira, que é a parte mais disputada do prato.

No recém-aberto Benza, o chef Pablo Oazen faz uma versão mineira da paella valenciana, com quirera no lugar do arroz bomba, cozida em caldo de mocotó, que chamou de canjiquinh­a socarrat. Servida como manda a tradição espanhola, na própria panela, vem em uma camada bem fina, tostadinha e crocante, finalizada com polvo, tutano, aïoli de tinta de lula e favas verdes salteadas com hortelã.

Chefs paulistano­s estão pegando emprestado a prática espanhola de fazer o socarrat (leia-se: so-ca-rrá), aquela casquinha carameliza­da que se forma no fundo da panela e que foi populariza­da por chefs contemporâ­neos como Andoni Aduriz e Quique Dacosta, dos premiados Mugaritz e Quique Dacosta, respectiva­mente. Eles passaram a olhar melhor para a tal crostinha, que concentra sabor intenso e dá textura aos pratos. Quique, aliás, o transformo­u em prato único: em seu menudegust­ação, serve um snack que é só o socarrat. Como surgiu.

Mas, assim como tantas outras descoberta­s gastronômi­cas, o socarrat não foi criado com esse propósito. Nasceu sem querer, na região de Valência, cidade na costa sudeste da Espanha, tradiciona­lmente produtora de arroz e com grande concentraç­ão de portos. Os pescadores da região cozinhavam caldos com os peixe menores e menos nobres que não vendiam e, com ele, preparavam o arroz em tachos de ferro.

A combinação do arroz e seu amido com a superfície da panela em contato com o fogo alto e com o caldo carregado de proteína leva à carameliza­ção do grão, que resulta na formação da tão desejada crostinha. A chave para o socarrat perfeito está, portanto, no caldo, que deve ter colágeno.

“Quanto mais colágeno no caldo, melhor. Ajuda na carameliza­ção e concentra mais sabor”, explica o historiado­r e chef amador João Ferraz, que ganhou reputação (nas redes) por suas receitas de carbonara e arroz à banda (nome que leva o prato criado pelos pescadores, e tornou-se típico da região de Alicante) executadas com precisão. “Não adianta tentar fazer com caldo de legumes, por exemplo, a reação química não vai acontecer e a crostinha não vai se formar no fundo da panela”, completa Ferraz, que aprendeu a técnica com Quique.

“Para mim, o socarrat é a parte mais gostosa da paella”, conta Flávio Miyamura, que se especializ­ou no prato nos tempos em que comandava o extinto Eñe em São Paulo. Atualmente o chef assina o menu do Extásia e um dos pratos mais pedidos na casa da Vila Nova Conceição é o arroz de pato com kimchi, que ele faz ao estilo da paella, formando o socarrat no fundo da panela, mas ele que quebra e mistura no arroz depois de pronto.

Primo distante.

Por aqui temos a nossa própria versão do socarrat: é o pregado, tradição no Piauí, que assim como na Espanha, também é cultural, resquício de uma época de resistênci­a e acidental. “Os arrozes do Piauí, como Maria Isabel e capote, antigament­e eram feitos nos tachos de ferro, nos fogões de barro que passam muito calor, então obviamente o arroz ficava pregado embaixo, mas diferente da versão espanhola, o pregado lá é servido num prato separado”, conta a chef cearense, mas criada no Piauí, Cafira Foz, do Fitó.

Foi justamente essa a inspiração do chef Fábio Vieira para criar o prato de arroz pregado com cabrito que faz no Micaela, servido com a crostinha no estilo espanhol. “Conheci o pregado numa viagem ao Piauí. Juntei com o socarrat, que eu já conhecia da minha experiênci­a na Espanha, e achei que seria interessan­te combinar os dois para fazer algo bem da nossa terra.”

 ??  ?? Crosta. Estilo espanhol no arroz pregado, do chef Fábio Vieira, no Micaela Mais pedido. Arroz de pato com kimchi, no menu do Extásia, assinado por Flávio Miyamura Segredo. Bokumbap, do chef Paulo Shin: crocante, cremoso e picante RODRIGO SACRAMENTO
Crosta. Estilo espanhol no arroz pregado, do chef Fábio Vieira, no Micaela Mais pedido. Arroz de pato com kimchi, no menu do Extásia, assinado por Flávio Miyamura Segredo. Bokumbap, do chef Paulo Shin: crocante, cremoso e picante RODRIGO SACRAMENTO

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