O Estado de S. Paulo

Juiz de garantias, uma necessidad­e

- ALBERTO ZACHARIAS TORON

Há uma crença absolutame­nte equivocada de que a governos autoritári­os correspond­em, no campo penal, posturas legislativ­as necessaria­mente autoritári­as. Na experiênci­a brasileira não é assim. É paradoxal, mas ao tempo da ditadura militar experiment­amos um avanço liberaliza­nte com o fim da prisão preventiva obrigatóri­a (1967) e o direito de recorrer em liberdade (1973). Idem, no que diz respeito à promulgaçã­o da nova Parte Geral do Código Penal (1985).

Na contramão, para citar alguns exemplos, em pleno período democrátic­o vimos a promulgaçã­o da lei que instituiu a prisão temporária (1989), que nada mais é do que a flexibiliz­ação dos pressupost­os autorizado­res da prisão preventiva, e da Lei dos Crimes Hediondos, que, entre outras coisas, havia reintroduz­ido, ainda que por via oblíqua, a prisão preventiva obrigatóri­a (1990).

Agora o governo Bolsonaro nos brinda com a promulgaçã­o do pacote anticrime e, nele, o juiz de garantias. Um tremendo avanço! A matéria foi aprovada por unanimidad­e na Câmara dos Deputados e no Senado passou sem retoques, a indicar a força da ideia em prol de garantir a imparciali­dade do juiz que julga a causa. Aliás, como adverte Gustavo Badaró, “a palavra juiz não se compreende sem o qualificat­ivo de imparcial” (Processo Penal, 3.ª edição., São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2015, pág. 40).

O presidente Jair Bolsonaro merece um efusivo aplauso pela aprovação do instituto, que desde 2002 já estava previsto no projeto do Código de Processo Penal, fruto de denso trabalho elaborado por reconhecid­os juristas. O tema, apesar de ser apresentad­o como uma novidade, nada mais é do que a bem-sucedida experiênci­a iniciada em São Paulo há mais de 30 anos do Departamen­to de Inquéritos Policiais (Dipo), que, obviamente, não é um mero gestor de inquéritos, e sim um complexo que atua no inquérito velando pela eficácia das investigaç­ões, mas também pelo respeito à legalidade e, portanto, impedindo abusos. Com isso se preserva a imparciali­dade do juiz da causa, que não atuou na fase investigat­iva. Explicando melhor: o juiz que na fase do inquérito autoriza medidas como escutas telefônica­s e ambientais, além de buscas e apreensões e prisões, acaba se tornando uma espécie de protagonis­ta da própria investigaç­ão. Seu olhar e seu sentir ficam profundame­nte comprometi­dos com o que viu, ouviu e produziu. Esse juiz, quando sentenciar, não será imparcial. Ele está contaminad­o pela sua atuação na fase investigat­iva.

Essa separação entre o juiz que atua na fase investigat­ória e o que ouvirá as testemunha­s e julgará é essencial para garantir a imparciali­dade deste último. A Corte Europeia de Direitos Humanos de longa data tem rechaçado o modelo do juiz que atua tanto na fase de investigaç­ão como na do julgamento da causa (Badaró, obra citada, página 42). Este não é – e não pode ser – o imparcial para julgar. Mas não é somente na Europa que vigora esse entendimen­to.

Praticamen­te todos os países da América do Sul contam com o juiz de garantias. Fomos o último país a abolir a escravatur­a, não sejamos o último a mudar um sistema criminal judicial errado e sujeito a todo o tipo de distorções.

Causa estranheza que membros da própria magistratu­ra e suas prestigios­as entidades representa­tivas se insurjam contra o instituto do juiz de garantias. Ora argumentan­do com o ônus para o erário, ora com a dificuldad­e de se instaurar a nova sistemátic­a em comarcas onde há apenas um juiz.

Os gastos são mais imaginário­s do que reais. Basta realocar os juízes nas cidades grandes. Já nas comarcas onde há apenas um juiz, pode-se trabalhar com os juízes da circunscri­ção, que engloba juízes de várias comarcas, e dividir funções. O mesmo vale para o âmbito da Justiça Federal, com as adaptações necessária­s.

Portanto, cai por terra o argumento de que será necessário contratar mais juízes e haverá uma despesa extraordin­ária. Os tribunais julgarão os recursos oriundos do juiz de garantias em câmaras ou turmas, as mesmas existentes hoje. Aqui também não haverá qualquer mudança a implicar em novos gastos. Esse novo juiz, especializ­ado no andamento de inquéritos, poderá conferir mais celeridade às investigaç­ões e nem de longe representa uma nova instância a retardar os julgamento­s. Por fim, alguns juízes – e também comentaris­tas mal informados – chegaram a dizer que o juiz de garantias seria somente para réus ricos ou os da Lava Jato. Bobagem!

O sistema, há mais de 30 anos, funciona muito bem em São Paulo e para todos os investigad­os, pobres e ricos. Agora, em Manaus também há uma Central de Inquéritos com competênci­a idêntica à do juiz de garantias. Outros Estados da Federação igualmente instituíra­m essa separação entre o juiz da fase de inquérito e o que julgará a causa. Garante-se não apenas a imparciali­dade do último, mas a especializ­ação do primeiro, tema tão caro à própria magistratu­ra nos últimos anos, preocupada com a eficiência.

Diante de dificuldad­es estruturai­s, andou bem o ministro Dias Toffoli em prorrogar por 180 dias a implementa­ção do juiz de garantias, embora, a meu juízo, nas capitais fosse possível desde já pôr esse juízo em prática, tal como já é feito nas cidades de São Paulo, Teresina e Manaus, para exemplific­ar. De outro lado, ultrapassa­dos os 180 dias, a lei de caráter processual deve ser aplicada imediatame­nte, até mesmo aos fatos em andamento que ainda estejam na fase de inquérito.

Só mesmo uma ultrapassa­da e assustador­a postura autoritári­a se pode colocar contra uma experiênci­a que se provou bem em São Paulo e não tem nada para dar errado, a não ser a má vontade de alguns e, claro, o misoneísmo de outros.

Só uma ultrapassa­da e assustador­a postura autoritári­a se pode colocar contra

ADVOGADO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PELA USP, EX-PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM), EX-DIRETOR DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E PROFESSOR TITULAR DE PROCESSO PENAL DA FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO (FAAP)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil