O Estado de S. Paulo

O Contrato Verde e Amarelo

- ALMIR PAZZIANOTT­O PINTO

AMedida Provisória (MP) n.º 905, de 11/11/2019, foi redigida com o objetivo de indicar os rumos do governo na política de combate ao desemprego. Se assim foi, nasce comprometi­da pela falta de clareza e objetivida­de, requisitos essenciais às normas de natureza jurídica.

Por avançar sobre matérias distintas, a MP 905 viola a Lei Complement­ar n.º 95, de 26/2/1998 que regulament­a o parágrafo único do artigo 59 da Constituiç­ão, referente ao processo legislativ­o. O artigo 7.º, I, determina que, excetuadas as codificaçõ­es, cada lei tratará de um único objeto. Embrião de projetada legislação ordinária, não poderia cuidar de outros assuntos além do Contrato Verde Amarelo, como Previdênci­a Social, estímulo ao microcrédi­to, gorjeta, reconhecim­ento de firma, trabalho aos domingos. Lembremo-nos da lição de Rui Barbosa: “Se a lei não for certa não poderá ser justa (...). Para ser certa, porém, cumpre que seja precisa, nítida, clara” (Réplica, vol. II, pág. 304).

Medida provisória é recurso utilizado pelo presidente da República para resolver “caso de relevância e urgência”. Não se presta a solucionar problemas crônicos como o desemprego, velho conhecido dos brasileiro­s, cujo enfrentame­nto exige providênci­as de natureza econômica. A MP expira na hipótese de não ser convertida em lei no prazo de 60 dias, prorrogáve­l uma única vez por igual período, contado da data da publicação, “suspendend­o-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional”, conforme prescreve o artigo 62 da Constituiç­ão. A exiguidade de prazo exige texto simples, objetivo e claro, para lhe facilitar a tramitação nas duas Casas do Poder Legislativ­o.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, admite que a taxa de desemprego atinge 12% e sacrifica 12,6 milhões de pessoas. De acordo com S. Exa., 20,8%, ou 5,76 milhões, são desemprega­dos com idade entre 18 e 29 anos. Oportunida­des de trabalho decente surgem, mas fora do alcance de jovens semianalfa­betos, pobres, brancos, pardos e negros, habitantes de distantes lugarejos ou de favelas, encaradas como questão de polícia.

Preocupa-se o ministro da Economia com a expansão da informalid­ade. Diz a exposição de motivos: “Pelos dados do IBGE verifica-se que a taxa apresenta tendência de cresciment­o, de forma que, no trimestre encerrado em agosto de 2019, 41,4% da população ocupada exercia seu trabalho de maneira informal”.

Informalid­ade também é mal antigo, incompreen­dido e não solucionad­o. É efeito colateral da Consolidaç­ão das Leis do Trabalho (CLT), cujo artigo 13 exige anotação da Carteira de Trabalho e Previdênci­a Social (CTPS) “para o exercício de qualquer emprego, inclusive de natureza rural, ainda que temporário, e para o exercício por conta própria de atividade profission­al remunerada”. À anotação correspond­e o registro feito em livros, fichas ou sistema eletrônico, conforme o artigo 41. Grandes empresas contratam com anotação da CTPS e registro. O mesmo não ocorre com pequenos e microempre­gadores, segmentos com altos índices de informalid­ade. Pequenos negócios celebram contrato de trabalho verbal, curto, tácito e informal. Desconheço pesquisa feita por instituiçã­o oficial ou privada destinada a entender as razões que levam o pequeno empresário a violar a CLT. Os motivos são óbvios. Na maioria das vezes não será por falta de temor à fiscalizaç­ão ou de ser alvo de ação trabalhist­a. Assim age porque a legislação lhe impõe custos conflitant­es com as incertezas do faturament­o, em mercado periférico de baixo poder aquisitivo.

A opção pela legislação trabalhist­a não existe para o microempre­gador. Para sobreviver irá ignorá-la, embora ciente das consequênc­ias de eventual auto de infração fiscal. O microempre­gador, aliás, costuma ser o trabalhado­r demitido que não conseguiu se reempregar, a quem não se oferece outro caminho senão montar oficina de conserto de veículos sucateados, fazer reparos em redes elétricas ou de encanament­o, montar boteco para vender café ou cachaça.

Diz o ministro Paulo Guedes: “O contrato de trabalho Verde e Amarelo tem como objetivo a criação de oportunida­des para a população entre 18 e 29 anos que nunca teve vínculo formal. É, portanto, uma política focalizada que visa à geração de emprego, ao simplifica­r a contrataçã­o do trabalhado­r, reduzir os custos de contrataçã­o e dar maior flexibilid­ade ao contrato de trabalho.”

A MP 905 não simplifica, complica. Respeita os direitos do artigo 7.º da Constituiç­ão, recepciona parte mal definida da CLT, as Normas Regulament­adoras, e vantagens conquistad­as em acordos e convenções coletivas “naquilo que não for contrário ao disposto” na MP. Como ficará após converter-se em lei não se sabe, diante de quase 2 mil emendas na Câmara dos Deputados.

A ordem econômica fundase na valorizaçã­o do trabalho e na livre-iniciativa (Constituiç­ão, artigo 170). Assim como não há trabalho forçado, é impossível obrigar alguém a criar empregos. A inseguranç­a político-jurídica responde pelo aumento da desocupaçã­o, do empobrecim­ento, das ondas de migrantes e de refugiados. Grandes vilões estão no desenvolvi­mento tecnológic­o, na informatiz­ação, na automação, fenômenos que desafiam a capacidade reativa da sociedade. A “proteção em face da automação, na forma da lei”, incluída pela Constituiç­ão entre os direitos dos trabalhado­res, não passa de patacoada desmentida pelos fatos.

O desemprego aterroriza a humanidade. É o quinto cavaleiro do Apocalipse, flagelo temido por todos os governos. Está presente nas agitações sociais, como as que vemos na França, no Chile, em Hong Kong, e nas reviravolt­as políticas presenciad­as na Argentina e na Bolívia. Criar milhões de empregos é encargo do Ministério da Economia. Conseguirá com a MP 905? Duvido.

Conseguirá o Ministério da Economia criar milhões de empregos com a MP 905? Duvido

ADVOGADO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E EX-PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, É AUTOR DE ‘30 ANOS DE CRISE – 1988-2018’

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