O Estado de S. Paulo

O peso do passado

O escritor chileno Alejandro Zambra mostra, em ‘Forma de Voltar Para Casa’, como a discussão sobre vítimas e assassinos no governo Pinochet ajuda a explicar as atuais revoltas sociais

- ALEJANDRO ZAMBRA ESCRITOR CHILENO Ubiratan Brasil

Os movimentos populares que chacoalhar­am o Chile no final do ano passado revelaram uma revolta anunciada – uma grande parcela da sociedade, inconforma­da com as desigualda­des sociais, explodiu em protestos generaliza­dos. O escritor chileno Alejandro Zambra, um dos mais importante­s da atual literatura latino-americana, acompanhou os eventos com uma certa convicção: a de quem antevia, pela arte, os fatos. Basta ler o romance Formas

de Voltar Para Casa, escrito em 2010 e que a editora Tusquets lança agora em nova edição – a primeira foi editada pela Cosac Naify em 2014. Em uma narrativa em primeira pessoa, o leitor acompanha as observaçõe­s de um menino cuja infância é vivida durante a ditadura de Augusto Pinochet, especialme­nte nos anos 1980. E, mais que as atrocidade­s de um governo de exceção, o que sobressai no texto é a população silenciosa, que vive aquele período sem heroísmo, com medo ou indolência. Pior: conivente com os acontecime­ntos.

A narrativa alinha momentos fictícios com reais, estratégia que permite a Zambra lidar com uma questão delicada: como lidar com o passado? E como esse passado pode explicar o presente? Sobre o assunto, ele respondeu por e-mail às seguintes questões.

Como você avalia seu romance hoje, diante dos acontecime­ntos que marcaram o Chile nos últimos meses? De alguma maneira, trata-se de uma consequênc­ia do desalento do narrador diante da eleição presidenci­al de Sebastián Piñera?

Terminei o romance em fevereiro de 2010, ou seja, há quase dez anos exatos, quando Piñera foi eleito pela primeira vez. Muitos de nós custamos a acreditar que os chilenos tivessem escolhido um candidato de direita, achei que haviam perdido a memória. Houve uma certa ingenuidad­e também, nas eleições. Essa ideia, tão falsa, de que os multimilio­nários não precisam de mais dinheiro. No Chile, onde não existe o hábito da filantropi­a, o multimilio­nário se dedica a continuar sendo multimilio­nário, não tem nenhum desejo de devolver à comunidade o que ela lhe deu. Isso está particular­mente claro nos escândalos de conluio observados nos últimos anos no Chile. Empresas que ganham muito dinheiro fazem acordos para aumentar mais os preços. E, claro, no seu primeiro governo, e no atual, Piñera se dedicou a perpetuar e a consolidar o capitalism­o selvagem que rege o Chile desde a ditadura. Piñera representa o poder econômico, os grandes empresário­s e as grandes fortunas chilenas, e governa para eles. E, claro, quando o povo se levanta, a única solução é exercer a violência de Estado, como ocorreu em meu país durante as revoltas de outubro. É uma situação muito dolorosa.

Seria esse um romance sobre a legitimida­de da dor?

Sim, acho que sim. Para mim, a legitimida­de é um dos temas principais das sociedades atuais em todo o mundo. No Chile, foi particular­mente importante a discussão sobre vítimas e assassinos. Mas, claro, uma separação entre bons e maus é algo enganoso, porque há uma maioria silenciosa que claramente não foi vítima nem culpada, entretanto também não podemos dizer que foi totalmente neutra, porque nas sociedades polarizada­s a neutralida­de não existe. Por outro lado, este é um romance geracional. Tínhamos a sensação de que não éramos protagonis­tas, que os protagonis­tas eram nossos pais. E na realidade fomos nós que crescemos na ditadura, como árvores obrigadas a crescer retas. Era muito fácil imaginar que não éramos os protagonis­tas. E nos custou vários anos assumir esse protagonis­mo. A infância, num outro sentido, sempre é como uma ditadura. Foi muito difícil para mim escrever sobre a infância sem falar da ditadura, e o contrário, porque depois fica fácil projetar um discurso desligado da experiênci­a. Mas efetivamen­te nós, as crianças, não sabíamos o que estava ocorrendo. Notávamos alguma coisa, sabíamos coisas, dependíamo­s do que nossos pais opinavam ou faziam, mas, aos 15, aos 20 anos, a família se amplia e muda e as experiênci­as horríveis que seus amigos viveram passam também a ser suas, por exemplo. A dor deles é sua dor, embora não a tenha vivido. Quem pode contar a história? Aquele que sobreviveu. O autor é sempre uma autoridade e alguém que sobreviveu à história e por isso pode contá-la.

“Ao menos naquele tempo havia ordem”, diz o pai do narrador, referindo-se ao governo Pinochet. No Brasil, a ditadura militar colhe elogios. Esse sentimento tornou-se comum na América Latina atual?

Sim, isso me preocupa. Gostaria de lhe responder que não, mas bem, aí estão os governos do Chile, Brasil e Estados Unidos, entre outros, como evidência. A última vez que fui ao Brasil foi na época em que Bolsonaro foi eleito e senti muita tristeza e impotência entre as pessoas com quem conversei. E vivi nos Estados Unidos nos meses anteriores à eleição de Trump e não vi absolutame­nte ninguém que consideras­se possível sua vitória. E, no Chile, conheci poucas pessoas que apoiavam Piñera. Suponho que me movimento em um mundo em que há muitas ideias amplas e consensuai­s sobre democracia, direitos humanos, direitos de reprodução e igualdade de gênero, mas há um mundo paralelo onde tudo o que consideram­os resolvido não está. Esta falta de comunicaçã­o é muito grave, como também a sensação de que somos bons ou maus.

O que faltaria?

Acho que faz falta um diálogo verdadeiro entre esses dois mundos, embora seja difícil porque são posições demasiadam­ente antagônica­s. Faz falta um diálogo real, discussões profundas, crítica e autocrític­a. E sobretudo a autocrític­a, talvez, que é muito saudável. Estamos diariament­e dando opiniões, construímo­s um personagem sólido, que não duvida, que não se equivoca, defendemos esse personagem, porque o mundo nos chama a nos defender. Mas deveríamos nos perguntar se realmente acreditamo­s no personagem que construímo­s e defendemos. Devemos nos perguntar permanente­mente quem somos, atender aos vários egos que temos internamen­te. Acho que existe uma falta de humildade e de solidaried­ade e principalm­ente de autocrític­a. E acho que a literatura serve para isso. A literatura lida e escrita.

Seus personagen­s lembram do passado de forma distinta. Aliás, com o passar dos anos, a tentativa de se definir uma versão verdadeira do passado torna-se cada vez mais difícil. O quanto isso é maléfico para a história?

A história se constrói nesse diálogo, mas existem perguntas objetivas, por exemplo: as ditaduras latino-americanas violaram sistematic­amente os direitos humanos. Quem duvida disso? Quem pode contestar? É uma realidade histórica e, no entanto, surge algum idiota no Twitter e contesta e justifica. Porque esse é o objetivo, provocar. Foi o que Donald Trump entendeu muito bem. A ideia era dizer barbaridad­es, ser “valente”, sair nos jornais a qualquer preço.

O livro mostra traumas sofridos por vítimas da ditadura, como o professor que teme o barulho de tiros de revólver. A revelação de dores como essa são mais comuns atualmente ou tais dores ainda são sufocadas por aqueles que querem se esquecer do passado?

São mais comuns, naturalmen­te, ainda bem. Em 2013, 40 anos depois do golpe de Estado, houve novos testemunho­s de pessoas que sempre guardaram silêncio. E esse silêncio tinha uma explicação, especialme­nte por parte de pessoas que foram torturadas “pouco”. Elas próprias afirmavam: “Fui torturado, mas pouco”. Imagine como isso é horrível. Elas sentiam não ter direito de ocupar o lugar de vítimas, embora tenham sido vítimas, porque viram pessoas que sofreram mais. Acho que no Chile, atualmente, especialme­nte a partir das revoltas, há muita gente disposta a falar, a narrar, a contar as histórias.

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CRISTIÁN ORTEGA PUPPO O autor. Texto destaca o silêncio do povo diante da ditadura
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Alejandro Zambra
Tradução:
José Geraldo Couto
Editora:
Tusquets (160 págs., R$ 44,90)
FORMAS DE VOLTAR PARA CASA Autor: Alejandro Zambra Tradução: José Geraldo Couto Editora: Tusquets (160 págs., R$ 44,90)

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