O Estado de S. Paulo

Ele não é o único

Alvim apenas acrescento­u teatralida­de a discurso que é voz corrente entre figuras de proa no governo.

- Marcos Guterman JORNALISTA E HISTORIADO­R, AUTOR DO LIVRO ‘NAZISTAS ENTRE NÓS’ (EDITORA CONTEXTO)

Não será surpresa se a atenção da opinião pública se concentrar no tal parágrafo inspirado em Goebbels como prova definitiva, para alguns, do “nazismo” latente do governo. O problema, contudo, não é o trecho em questão, mas todo o discurso. Do início ao fim, quase todas as ideias ali contidas são as mesmas que integraram a doutrina da maioria dos regimes ditatoriai­s de perfil totalitári­o ao longo da história contemporâ­nea, inclusive o nazista.

A ideia da elaboração de uma “arte nacional, capaz de encarnar simbolicam­ente os anseios da maioria da população”, está na essência do controle político e social acalentado por qualquer ditadura totalitári­a. Nesse modelo, será “nacional” somente aquilo que obedecer aos critérios estabeleci­dos pelo Estado; logo, tudo o que não se enquadrar nisso será “arte degenerada”, como as autoridade­s nazistas qualificar­am as obras produzidas por artistas que o Estado havia classifica­do como inimigos. Levado ao extremo, tal programa violenta de forma brutal a diversidad­e cultural, sem a qual não se pode falar em democracia.

Alvim declarou que, “quando a cultura adoece, o povo adoece junto”, frase que bem poderia ter sido dita por qualquer ideólogo nazista. No Terceiro Reich, o inimigo era tratado como uma doença que ameaçava “contaminar” o “corpo nacional” por meios insidiosos – sendo a cultura o principal veículo dessa “infecção”.

Para enfrentar esse risco, Alvim acentuou a “urgência” de medidas para transforma­r a “arte brasileira” numa arte “heroica”, “nacional” e, claro, “imperativa”. Segundo o agora ex-secretário, ou a cultura se submete a esse plano de “salvação”, “ou então não será nada” – palavras textualmen­te retiradas do discurso original de Goebbels e que se coadunam perfeitame­nte com o caráter absoluto do nazismo, que considerav­a tudo como questão de vida ou morte.

A exoneração do secretário diante da repercussã­o negativa de sua fala não muda o fato de que ele nada mais fez do que acrescenta­r teatralida­de a um discurso que é voz corrente entre várias figuras de proa no governo, a começar pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Ao dizer que “as virtudes da fé, da lealdade, do autossacri­fício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de arte” a partir das iniciativa­s do governo, o agora ex-secretário de Cultura apenas reiterou o que Bolsonaro já havia dito em outras oportunida­des: que, doravante, só terá financiame­nto público o projeto artístico que se prestar a difundir a ideia de nação elaborada pelo bolsonaris­mo.

Em outras palavras, o bolsonaris­mo, assim como qualquer outro movimento autoritári­o, quer transforma­r a imaginação estética em mecanismo de construção de um senso de unidade nacional e de submissão coletiva ao Estado – tudo isso, segundo Alvim, com vista ao “renascimen­to da cultura e da arte no Brasil” e à “construção de uma nova e pujante civilizaçã­o brasileira”. Esses trechos entre aspas são da lavra do ex-secretário de Cultura, mas Goebbels certamente assinaria embaixo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil