O Estado de S. Paulo

Bolsonaro e sua circunstân­cia

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Oassessor que se inspirou em Goebbels só foi exonerado porque houve uma grita generaliza­da. O conteúdo da fala é o que Bolsonaro já disse inúmeras vezes.

Não causa surpresa o derretimen­to acelerado da popularida­de do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemen­te divulgada. O levantamen­to mostrou que, em um ano, a expectativ­a positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuai­s, de 63% para 40%. O índice de entrevista­dos que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Podese dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra.

O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiro­s a sensação de que suas decisões estapafúrd­ias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalid­ade, não são meros acidentes ou fruto de circunstân­cias passageira­s, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é.

Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldad­e que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiênci­a de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredit­a deliberada­mente o exercício da Presidênci­a porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperáve­l, convenceus­e de que foi eleito para desmoraliz­ar a política e sua liturgia institucio­nal, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospect­iva, a reunião ministeria­l em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificad­a) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas.

Num dia, o ministro da Educação aparece num vídeo dançando com um guarda-chuva, numa imitação circense do filme Dançando na Chuva, para acusar seus críticos de difundirem fake news; noutro, o secretário da Cultura toma emprestado trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, para anunciar o advento de uma cultura “nacional” financiada pelo Estado, causando horror e estupefaçã­o no País e fora dele. Entre um e outro desses momentos nada edificante­s de seus assessores, o próprio presidente Bolsonaro achou tempo e oportunida­de para fazer piadas de mau gosto sobre um vasto cardápio de temas grosseiros, como se estivesse em um churrasco com amigos.

Enquanto isso, sempre que pressionad­o a tomar decisões realmente relevantes para o País, como autorizar privatizaç­ões potencialm­ente polêmicas, cortar privilégio­s de servidores públicos e reduzir subsídios, o presidente hesitou. Mesmo a reforma da Previdênci­a, que o governo celebra como um feito de Bolsonaro, foi sabotada em vários momentos pelo presidente, tendo sido aprovada graças à mobilizaçã­o de parlamenta­res e alguns técnicos do governo. Preocupado em construir seu próprio partido e sua candidatur­a à reeleição, sobre a qual fala quase todos os dias, Bolsonaro dedica todo o seu tempo não a pensar em maneiras de promover o desenvolvi­mento do País, mas a alimentar polêmicas de cunho claramente eleitoreir­o, enquanto assina medidas destinadas à irrelevânc­ia – mas só depois de causar tumulto e inseguranç­a jurídica no País.

Quando confrontad­o pelos jornalista­s a respeito disso ou a respeito dos cada vez mais volumosos problemas do clã Bolsonaro e de alguns de seus assessores mais próximos com a Justiça ou com a lisura administra­tiva, o presidente reage de forma truculenta. Mais recentemen­te, disse que os jornalista­s são uma “espécie em extinção” e mandou que a imprensa tomasse “vergonha na cara” e tratasse de “deixar o governo em paz”. (Ver editorial abaixo, A tenacidade da imprensa.)

Não são rompantes, e perde tempo quem acredita na possibilid­ade de que, com o tempo, Bolsonaro vá temperar seu comportame­nto. O assessor que se inspirou em Goebbels para anunciar o “renascimen­to da cultura nacional” só foi exonerado porque houve uma grita generaliza­da diante de tamanho absurdo. Noves fora o plágio nazista, o conteúdo da fala que custou o cargo ao tal secretário é essencialm­ente o que Bolsonaro já disse e repetiu inúmeras vezes, mesmo antes da eleição. Portanto, ninguém pode se dizer surpreendi­do, nem mesmo os eleitores mais ingênuos. Bolsonaro é Bolsonaro há muito tempo.

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