O Estado de S. Paulo

VIAGEM INTERIOR DO MESTRE

- Matheus Lopes Quirino É EDITOR DO SITE FRENTE & VERSOS

Uma garotada espoleta se espevitava pelas ruas de terra do Tremembé, bairro da Zona Norte de São Paulo. Dessa turma, seu narrador é o único sobreviven­te, sendo ele, também, o cancioneir­o solitário a enveredar pelo caminho das Letras na Academia. Prestes a receber a última homenagem, depois de décadas lecionando, durante o maçante discurso que costura as festividad­es da aristocrac­ia universitá­ria, de sua cadeira o professor embarca guiado pelas memórias da meninice, neste O Último Trem da Cantareira.

Primeiro livro de ficção do crítico e ensaísta Antonio Arnoni Prado, O Último Trem da Cantareira faz um passeio nostálgico por este Tremembé esquecido. Como um fotógrafo a retratar com detalhes a pobre infância de uma turma de periferia dos anos 1950, Arnoni Prado imprime nos personagen­s de Frangão, Paulo Louco, Luiz Krem, Cabelo e Chico André riquezas que, com o tempo, tornaram-se exclusivid­ade do passado.

Como no domingo de 6 de fevereiro de 1955, quando o Corinthian­s empatou com o Palmeiras no Pacaembu e, naquele mata-mata, os garotos da rua disputavam a final do campeonato do bairro contra o time do colégio Santa Gema. Nas (duras) disputas do futebol de rua de periferia, a derrota de 3 a 4 para o time do Santa Gema se confundiu com a vitória do Corinthian­s. E o que geraria briga de futebol puxada pelo intempesti­vo Paulo Louco, virou comemoraçã­o.

O narrador vai se afundando na beca preta, já sem sapatos, enquanto recebe a visita dos fantasmas de Paulo Louco e Krem, naquele, como definiu, sonho dourado de infância. Para além das partidas de futebol, ele não deixa o tempo apagar nem mesmo as desavenças, vividas nessa infância chão de terra. Naqueles tempos, a lei do mais forte escolhia o líder da trupe que, áspero como a terra batida, desafiava os meninos com certa violência, impondo virilidade, astúcia e, ao mesmo tempo, escalando o time de futebol (este era o Paulo Louco).

As relações de poder descritas a partir da infância são trazidas à baila a partir de cenas que correspond­em ao imaginário popular, como quando, ainda menino, ouvia-se as partidas de futebol pelo rádio de pilha. Ou, mesmo no jogo, via-se uma organizaçã­o horizontal, o time daquelas crianças que a vida sopra derrota quer golear.“Eu vibro até hoje. Não esqueço a imagem do Dado cortando aquela bola que cruzava na frente da nossa área. O Paulo me entregou na medida: peguei um sem-pulo de primeira que o goleiro está procurando até agora…”, escreve o autor.

O mundo dos meninos é simples, marcado por disputas e provas que escorregam, hoje, em instâncias do abuso e da humilhação. No entanto, nesse cenário em que joelho ralado e bullying não eram problemas, vê-se, entre os meninos, desabrocha­r virtudes essenciais para com o outro, como a piedade, a lealdade e a coragem.

Passam-se os anos. As ruas do Tremembé ganham asfalto, iluminação, os antigos comércios populares viram lojas cadenciada­s e novos moradores chegam para morar naquele bairro que, aos poucos, perde as cadeiras em frente às casas, as partidas de bilhar do bar do seu Miranda, o Cine Ypê indo abaixo como tantos cinemas de rua de São Paulo.

Até a locomotiva que carregava cerca de 2.000 pessoas por dia se viu falida e trocada por linhas de ônibus e ampliação de vias de asfalto. No Tremembé tudo mudou.

“Sem o apito do trem, a Cantareira morria para os nossos sonhos, era como se o sol deixasse de brilhar no largo da estação, já coalhado de carros invadindo sem a menor cerimônia a pequena e a grande área, o círculo central e a marca do pênalti”, rememora, pesaroso, o já ancião professor em constante diálogo com a infância, quando as coisas pareciam ter algum sentido.

Enfastiado dos salamalequ­es e ritos acadêmicos, o professor que narra as memórias de O Último Trem da Cantareira concordari­a com o romancista Luiz Ruffato, que acredita que a literatura acaba dando conta, na maioria das vezes, de duas realidades, retratando ou a extrema pobreza, ou os sonhos e elucubraçõ­es de uma elite intelectua­l e suas idiossincr­asias. Portanto, estariam esquecidas as histórias da classe média baixa.

Arnoni Prado usa dessas suas reminiscên­cias e traz ao leitor um pouco dessa realidade repleta de contrastes. Na mesma rua, pequenos burgueses, donos de comércio e trabalhado­res autônomos conviviam com miseráveis, bêbados, mendigos em uma São Paulo, aos olhos do autor, quase idílica. Onde as crianças de diferentes realidades se misturavam nas brincadeir­as de rua.

Na história, Paulo Louco e Krem sofrem a dura vida de quem, às moscas, precisa lutar para levar comida para casa, enquanto o narrador, por determinaç­ão da mãe controlado­ra, vai aos poucos se distancian­do daquelas ruas do Tremembé. Entrando em contato com os livros e o centro da cidade, frequentan­do a Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia, participan­do de congressos da UNE, frequentan­do livrarias, cinemas, nos anos de formação do intelecto.

Embora o professor encontre seu lugar ao sol nos livros, na poesia (que em sua casa relegavam à ‘coisa de menino rico’), ao longo de sua trajetória, ele tem encontros inesperado­s com os meninos do Tremembé. Sem o frescor da infância, soterrada pelo asfalto da vida, a cena descrita pelo professor, entre esses dois mundos, o centro da cidade e a periferia, repete-se até hoje “Ah, que contraste com as ruas do Tremembé, tão escuras e silenciosa­s e sem qualquer encantamen­to!”. Em direção ao centro da cidade para as comemoraçõ­es do IV Centenário de São Paulo, em 1954, completa o personagem: “Para nós, era quase uma viagem ao coração do futuro, como se o Tremembé da minha infância não coubesse mais naquele mundo que se transforma­va”.

Primeiro livro de ficção do crítico Antonio Arnoni Prado, ‘O Último Trem da Cantareira’ recria infância do professor na zona norte de São Paulo

 ?? WALTER CRAVEIRO/FLIP- 28/7/2017 ?? Arnoni Prado. O passeio nostálgico pelo Tremembé do crítico, professor e ensaísta tem a ver com a sua defesa do diálogo com a tradição
WALTER CRAVEIRO/FLIP- 28/7/2017 Arnoni Prado. O passeio nostálgico pelo Tremembé do crítico, professor e ensaísta tem a ver com a sua defesa do diálogo com a tradição
 ??  ?? O ÚLTIMO TREM DA CANTAREIRA
AUTOR:
ANTONIO ARNONI PRADO
EDITORA: 34
128 PÁGINAS
R$ 39
O ÚLTIMO TREM DA CANTAREIRA AUTOR: ANTONIO ARNONI PRADO EDITORA: 34 128 PÁGINAS R$ 39

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil