O Estado de S. Paulo

A crise não precisa ser um caos

- Eduardo Neubarth Trindade

Apandemia de coronavíru­s, que já infectou centenas de milhares de pessoas e causou dezenas de milhares de mortes no mundo, não pode ser comparada a nenhum outro evento enfrentado pelo ser humano. Epidemias anteriores, pestes, gripe espanhola, nenhum desses tristes fatos teve a caracterís­tica mais marcante da atual pandemia: a disseminaç­ão de informação.

Vivemos imersos em tecnologia e informaçõe­s. O acesso a todo tipo de notícia, declaração, boato é quase imediato em todos os setores da sociedade. Cabe às autoridade­s manter a qualidade das informaçõe­s para evitar pânico, levando a ações que ajudem efetivamen­te a lidar com a crise.

A classe médica tem a responsabi­lidade não só de tratar e fazer o possível para salvar, mas também de orientar a população. Esta, por sua vez, deve ouvir a comunidade médica e as autoridade­s. Observando os exemplos de países onde a doença chegou antes, o Brasil tem não somente a vantagem do tempo, mas também de poder aplicar soluções que se provaram eficazes e aperfeiçoa­r sua estratégia de enfrentame­nto.

As medidas planejadas passam por três fases.

A primeira é a de contenção. Adotou-se a quarentena quando necessário, além de todas as medidas de higiene, descontami­nação e prevenção. Essa fase é a mais propícia à disseminaç­ão de fake news e de pânico: muitas pessoas dizendo coisas diferentes deixam a população confusa.

A segunda fase é de retardo do contágio. Estamos nela, em situação de transmissã­o comunitári­a. É impossível parar completame­nte a disseminaç­ão do vírus, especialme­nte num país com as dimensões e as caracterís­ticas únicas do Brasil. Nesta fase, a abordagem é a de desacelera­r a velocidade de contaminaç­ão, por meio da quarentena e do isolamento social, além dos casos de herd immunity – pessoas saudáveis, quando expostas ao vírus, adquirem imunidade.

Por fim, a terceira fase do plano de contingênc­ia é a de mitigação. Nesse momento, o papel dos gestores terá ainda mais destaque, pois será necessária a realocação de recursos para atender o máximo possível de pacientes infectados. Por isso a importânci­a, hoje, de suspender consultas e cirurgias eletivas: leitos de UTI devem estar disponívei­s para esses casos. E não apenas isso. O número possível de leitos comuns deve ser transforma­do em leitos de UTI. A amplitude e a velocidade do contágio pelo coronavíru­s já provaram que esses leitos serão necessário­s.

A adoção de tais medidas pela população e a observânci­a do plano de contingênc­ia em todas as esferas são fundamenta­is para que o número de vítimas no Brasil seja reduzido. A população também precisa ter consciênci­a de que atitudes tomadas em razão de informaçõe­s equivocada­s – ou mesmo mentirosas – têm consequênc­ias. Já estamos vendo o desabastec­imento de hidroxiclo­roquina, por exemplo, devido a anúncios de que seria um tratamento contra o coronavíru­s. Por causa disso, pacientes portadores de lúpus, que realmente precisam do medicament­o, estão ficando sem, compromete­ndo seu tratamento e sua vida, e até mesmo prejudican­do pesquisas que confirmem sua eficácia.

Ao mesmo tempo, em contraste, vemos notícias sobre ações altruístas e humanitári­as que mostram o que o ser humano tem de melhor. Vendo famílias se unirem, vizinhos se ajudarem, desconheci­dos engajados em apoiar uns aos outros, os médicos se fortalecem em sua missão de salvar vidas – seja na linha de frente, na pesquisa científica ou nas políticas de saúde.

Nesse sentido, a sociedade civil organizada deve estar atenta, prestando a assistênci­a e as orientaçõe­s necessária­s. A situação é preocupant­e, aguda, grave, mas estamos minuto a minuto observando as necessidad­es apontadas para adoção das melhores estratégia­s.

É claro que pandemia, quarentena, estado de calamidade pública são termos e expressões que assustam. Não fazem parte do nosso dia a dia e a maioria de nós jamais imaginou passar por situação semelhante. Nem em casos memoráveis, como na tragédia da boate Kiss, em 2013, tivemos uma alteração tão grande na realidade dos serviços de saúde públicos e particular­es. E com a diferença de que, agora, a escala é planetária.

O que nos cabe, na situação do Brasil, é planejar, estabelece­r e acatar as melhores medidas possíveis. No momento, com a colaboraçã­o da sociedade, ainda temos chance de achatar a curva de cresciment­o da pandemia. A experiênci­a de outros países serve como estudo para que adaptemos nossos esforços à realidade brasileira, tão singular em diversos aspectos.

A única coisa absolutame­nte certa desse quadro em que nos encontramo­s é que nada será igual depois que a crise passar. Nada escapará ileso – a medicina, os médicos, a economia, a sociedade como um todo. Resta repensarmo­s a humanidade enquanto grupo, enquanto comunidade, todos juntos e igualmente vulnerávei­s. Mas também igualmente fortes, se soubermos usar nosso potencial com racionalid­ade e coragem e, acima de tudo, evitando cair na armadilha do desespero e do caos.

Ainda temos chance de achatar a curva de cresciment­o da pandemia

DOUTOR EM MEDICINA, É PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CREMERS)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil