O Estado de S. Paulo

A responsabi­lização pelas mortes da pandemia

- ROGERIO SCHIETTI CRUZ MINISTRO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUTIÇA

Caminhamos para o fim do avassalado­r primeiro trimestre do ano de 2020 com projeções de que viveremos tempos ainda mais sombrios nos meses seguintes. Cerca de 1/3 de toda a humanidade se encontra sob algum isolamento social, orientada por políticas públicas responsáve­is e em conformida­de com parâmetros internacio­nais e qualificad­as análises científica­s.

A Covid-19 ainda não atingiu severament­e países do terceiro mundo, incluindo a África, e se encontra em grau inicial no segundo país mais populoso do mundo, a Índia.

Não se sabe ao certo o que virá pela frente, mas o que se percebe é que, com ineditismo na história da humanidade, todos os países estão enfrentand­o, do mesmo lado, um inimigo comum, o qual desafia potências e se infiltra sorrateira­mente em cada minúsculo espaço à espera da próxima vítima, que, muito antes de saber, já terá disseminad­o a praga a um sem-número de pessoas.

Governos responsáve­is, cientes dos gravíssimo­s efeitos econômicos e das deletérias e duradouras consequênc­ias sociais de suas decisões, marcham no front, com postura corajosa, certos de que não cabe timidez ou hesitação. O temor, portanto, de uma inevitável crise econômica não pode prevalecer ante a necessidad­e de preservar vidas.

Alguma reticência inicial de um ou outro governante cedeu ao inevitável caminho das amargas decisões que um verdadeiro líder há de tomar, se verdadeira­mente ama o seu povo e se coloca os interesses de toda a nação acima de suas próprias ideologias, de suas animosidad­es pessoais, de seus preconceit­os ou de sua ignorância.

Em poucas semanas, a se confirmare­m os prognóstic­os, a população se dará conta, olhando para o passado, da responsabi­lidade assumida, deliberada­mente, por seus governante­s. E os julgará, de um modo ou de outro.

A par disso, a responsabi­lidade de cada um poderá ser medida no âmbito dos tribunais nacionais e internacio­nais, por ações que possam configurar, a depender das motivações e do âmbito de cognição de seus autores, crimes contra a humanidade.

No Estatuto de Roma, de 1998, prevê-se como crime contra a humanidade, qualquer ato cometido “no quadro de um ataque, generaliza­do ou sistemátic­o, contra qualquer população civil”, na forma de homicídios, extermínio, perseguiçã­o de um grupo ou coletivida­de que possa ser identifica­do, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero. E, deixando em aberta a possibilid­ade de responsabi­lização, o Estatuto prevê também que constituem crimes contra a humanidade “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intenciona­lmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridad­e física ou a saúde física ou mental”.

Ao julgar o caso Herzog e outros vs. Brasil, a Corte Interameri­cana de Direitos Humanos assentou o entendimen­to de que “os crimes contra a humanidade são um dos delitos reconhecid­os pelo Direito Internacio­nal, juntamente com os crimes de guerra, o genocídio, a escravidão e o crime de agressão. Isso significa que seu conteúdo, sua natureza e as condições de sua responsabi­lidade são estabeleci­dos pelo Direito Internacio­nal, independen­temente do que se possa estabelece­r no direito interno dos Estados. A caracterís­tica fundamenta­l de um delito de Direito Internacio­nal é que ameaça a paz e a segurança da humanidade porque choca a consciênci­a da humanidade”.

Augura-se, em vozes e textos reproduzid­os nas redes sociais, que de toda essa crise possa emergir uma Nova Ordem Mundial, balizada por comportame­ntos mais responsáve­is, solidários, fraternais, dignos de serem qualificad­os como humanos. Por sua vez, será inevitável cobrar, com o rigor das leis, nacionais ou internacio­nais, a conta de quem se tenha colocado como um consciente entrave para a minoração dos efeitos dolorosos de que todos iremos padecer.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil