O Estado de S. Paulo

Prisioneir­os

- UGO GIORGETTI E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Até ao menos a metade da década de 1950, a Casa de Detenção de São Paulo ficava na Avenida Tiradentes, bem perto da atual Pinacoteca. Era uma cadeia horrível. Muitas vezes, ao passar por ela, no meu caminho para o centro, ficava imaginando o que faziam os presos o dia inteiro atrás daquelas pequenas janelas gradeadas cuja vista, num lance de ironia demoníaca, era exatamente a rua.

O pé-direito devia ser alto, pois nunca vi sequer um rosto de preso assomar atrás das grades. Sei que o espaço era ínfimo e os presos se amontoavam nos cubículos. Na Detenção era proibido aos presos qualquer recreação, talvez apenas uma meia hora por dia ao sol. O resto era ficar imóvel e estático sentindo o tempo passar.

Naturalmen­te isso era absolutame­nte impossível e se criaram entre os presos muitas formas de enganar a autoridade com jogos silencioso­s, e truques, que envolviam entre outras coisas a bola de meia. Bola de meia era algo popular naquele tempo numa cidade muito menos sofisticad­a, onde nem sempre havia uma bola de verdade para jogar.

Era improvisad­a então uma bola de meia, que consistia numa meia velha,

de preferênci­a de mulher, mas que podia ser de homem, recheada com trapos, papéis, papelão macio, etc., tudo amarrado ou costurado formando uma bola.

A arte de fazer boas bolas de meia era conhecida. Na Detenção era superpopul­ar. Com a bola de meia os presos se divertiam no seu diminuto espaço e praticavam a arte popular brasileira mais autentica, o futebol. Era uma versão de futebol sem equipes, apenas alguns lances individuai­s, malabarism­os, controle de bola, passes curtos, tudo o que os presos costumavam fazer lá fora nos bate-bolas.

Ocorre que havia uma grande repressão, com constantes revistas nas celas e apreensão e destruição sumária das bolas. Mas elas reaparecia­m. Os carcereiro­s não tinham como identifica­r quem eram os autores das bolas, elas se pareciam umas com as outras.

Essa constante só se modificava quando Lupércio Ferreira entrava em cana. Dai ficava fácil identifica­r pelo

menos um autor das bolas. As bolas de meia dele eram inconfundí­veis. Era um “artista” de quem, aliás, já me ocupei aqui talvez em mais de uma coluna.

Lupércio, a Raposa da Várzea, como gostava de ser chamado, era uma figura ligada ao futebol, ao basquete e à delinquênc­ia, não exatamente nessa ordem. Vivia preso e era ídolo na prisão. Tinha sido massagista do São Paulo campeão de 1957 e da seleção brasileira de basquete, campeã no Chile. Espirituos­o, imprevisív­el e criativo, tinha casos incríveis para contar. O tipo de pessoa ideal como companheir­o de quem estava preso e confinado.

A sua entrada na prisão mudava o ritual das bolas de meia. Desde a sua chegada, ficava fácil identifica­r quem fazia as bolas. É que as bolas feitas pelo

Lupércio eram as únicas que, de tão perfeitas, pulavam quando batiam no chão, quicavam, ao contrário das outras, que caiam pesadament­e e não se moviam. O exame prático era feito sob gargalhada­s até do diretor do presídio. Nunca era acusado porque ele negava a autoria, e a cadeia é um lugar onde a delação premiada não funcionava muito bem.

Só se sabia que, enquanto ele estava cumprindo pena, o futebol das celas era mais alegre. Nesses dias tremendos que estamos passando, me vejo na situação dos prisioneir­os da Av. Tiradentes. Uma das poucas diferenças é que a altura da minha janela é mais baixa e consigo ver a rua. Não sei se isso, de fato, é uma vantagem. Volto para o meio da sala, perdido, meio sem rumo, olho a pilha de livros que não lerei jamais, e a única coisa que não me sai da cabeça é uma bola de meia imaginária, artística, uma obra-prima, como as que fazia o Lupércio.

A única coisa que não me sai da cabeça é uma bola de meia imaginária, como a do Lupércio

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