O Estado de S. Paulo

O papel do presidente em uma epidemia

- AFFONSO CELSO PASTORE EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALM­ENTE

É muito difícil manter a frieza de raciocínio diante do último pronunciam­ento do presidente da República. Mas vou tentar. Há duas reações possíveis diante da propagação da covid-19: o isolamento social (“lockdown”) que a evita, salvando vidas; ou deixar que evolua para a “imunização natural”, que se dá quando o número de infectados é tão grande que o vírus não encontra mais hospedeiro­s, porém à custa de um número enorme de mortes. Devido ao temor das consequênc­ias econômicas, Boris Johnson e Donald Trump tentaram o caminho da imunização natural, sendo forçados a abandoná-lo. O que era inevitável na Idade Média – as mortes em dimensão catastrófi­ca – não é aceitável quando existem meios para reduzi-las. Cabe ao governo entender que, diante de uma epidemia, o objetivo de uma sociedade civilizada é ao mesmo tempo poupar vidas e minimizar seus custos econômicos. Não será com o incitament­o à burla do “lockdown” temporário adotado pelos governador­es que tal objetivo será alcançado. É preciso pensar no País, e não em objetivos pessoais. É preciso explicar à população que ela não será abandonada, que haverá recursos para amparar os mais afetados pelo “lockdown” e será suportado por nós mesmos assim que a tempestade terminar.

Cientistas estimam que para ser eficaz um “lockdown” iniciado rapidament­e pode durar de 2 a 3 semanas, mas será bem mais longo se o início for tardio. O Banco Central pode usar seu arsenal; o setor privado pode ajudar com doações; mas o peso maior recai sobre o governo federal, apesar da frágil situação fiscal. Não há como evitar que o déficit público tenha aumento expressivo, o que impõe à sociedade o aumento da carga que terá de ser suportada nos próximos anos, com reformas estruturai­s ainda mais duras e profundas. Mas o objetivo, agora, é enfrentar a epidemia e seus impactos, garantindo que os recursos sejam bem utilizados.

Todos os setores estão sendo atingidos e, mesmo com um “lockdown” mais curto, é provável que seu afrouxamen­to seja gradual. A menos que algum remédio surja rapidament­e, levando ao sonho de uma recuperaçã­o em V, esta será lenta. Meu temor é que cheguemos ao fim de 2020 com o PIB significat­ivamente abaixo do de 2019 que, medido pela renda per capita, já estava 8% abaixo de quando a recessão se iniciou, no primeiro trimestre de 2014.

Como esta é uma crise atípica que nos pega em situação fiscal frágil, alguns são levados a considerar aumento de gastos um tabu. Na minha visão não há como escapar disso. Esta não é uma crise que possa ser eliminada usando só o arsenal dos bancos centrais, como em 2008/09. É preciso salvar vidas e ajudar a recuperaçã­o dos mais atingidos. Primeiro, porque a recessão que já está em curso derrubará a receita tributária bem mais do que a queda do PIB. Segundo, porque diante da pobreza da população e da cessação de sua renda é impossível não desenvolve­r o que Armínio Fraga chamou de rede de solidaried­ade social. É muito bem-vinda a sugestão de um plano de 9 pontos enunciados por ele em coautoria com Vinicius Carrascos e José Alexandre Scheinkman. São medidas que deveriam ser encampadas pelo presidente com total apoio do Congresso, com ambos ficando plenamente consciente­s de que esta conta terá de ser paga por todos nós, aumentando nos próximos anos o esforço necessário para o equilíbrio fiscal.

É em um momento como este que se tem a consciênci­a exata da falta que faz ter um estadista na Presidênci­a da República

capaz de formular um diagnóstic­o coerente sobre como enfrentar uma epidemia. Nosso presidente não tem o discernime­nto sobre a gravidade do problema e nem o entendimen­to de qual é sua responsabi­lidade perante a sociedade. As medidas até aqui anunciadas para minimizar as consequênc­ias econômicas da crise são claramente insuficien­tes. É preciso muito mais. Não vejo histeria na sociedade e, sim, uma imensa perplexida­de diante do vácuo deixado pelo governo. Cabe ao governo assumir seu papel, explicando didaticame­nte a todos que agirá para suavizar os custos dessa epidemia com gastos extraordin­ários, que não se repetirão, e que não inibirão o ajuste estrutural que ocorrerá nos próximos anos. O erro não está em agir. O erro está em deixar o tempo passar. Já fizemos isto com o nosso programa de reformas, e não podemos repetir o erro em uma situação muito mais grave.

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