O Estado de S. Paulo

‘ME COBRO PARA DAR CONTA DE TUDO. VOU MUDAR’

- Carla Miranda, Editora de Capitu

Comecei escrever este texto às 10h30, com minhas duas filhas ainda dormindo. Não era o início do meu dia. Eu já havia feito reunião no Hangouts. E dado uma checada no status do apartament­o em que moramos – eu, elas e meu marido.

Pouca louça na pia, o que seria um alívio, se ali não estivessem duas panelas. Demais cômodos em diferentes estados de (des)organizaçã­o. Sala ajeitada, quaisquer 5 minutos resolveria­m. Quarto da caçula sem espaço livre para pisar no chão. Quarto da adolescent­e como todo quarto de adolescent­e.

A lista de tarefas começou a crescer. Recebi um e-mail da escola, com novas atividades para a minha filha. Nesta semana, ditei para ela os nomes da família, fizemos formas geométrica­s, montamos sequências com tampinhas de água e das muitas CocaColas que venho tomando.

Escrevo de olho no relógio, sabendo que meu próximo Hangouts começa em 5 minutos. É nossa reunião semanal, com editores e líderes de demais áreas do Estadão. Importante para falarmos de nós e das nossas equipes, dos rumos que estamos tomando.

Tudo isso é o que está acontecend­o agora na minha vida. Provavelme­nte, na sua também. As jornadas duplas ou triplas que fazíamos viraram quádruplas, quíntuplas. A minha era de jornalista, mãe e aluna de um curso de inovação. Agora também sou professora de educação infantil e dona de casa.

Queria dar conta de tudo. Sempre me cobro para isso. Mas bastaram três dias de home office para perceber que teria de escolher. E desempenha­r esses papéis de forma integral, sem me culpar pela falha em todo o resto. Escolhi mãe e jornalista. Foi uma decisão consciente, daquelas que seriam ótimas se a gente conseguiss­e cumprir totalmente. Porque também acabo querendo dar mais uns 70% para ter almoços e jantares razoáveis e uns 40% para limpar coisas e banhar a casa em álcool e desinfetan­te.

Meu marido procura fazer parte dessas atividades. Quando deixo, reclamo que ele demora. Ou que não faz as coisas da forma que eu entendo que deveriam ser feitas, dentro de um padrão pouco razoável que criei.

Mas decidi que vou mudar. Tentar ser mais leve na segunda-feira – e fazer de tudo para não cair em tentação na quarta, como ocorre nas dietas. Não sou psicóloga ou médica, mas temos entrevista­do esses profission­ais cotidianam­ente. Sei que essa seria a recomendaç­ão que eles dariam.

Se você também está nessa situação, podemos tentar fazer isso juntas. Um grupo de apoio, para que todas consigamos equilibrar nossos mil pratinhos diários sem nos cobrar tanto. Até para que estejamos de fato bem para ajudar a quem precisa, neste momento em que solidaried­ade é vital.

Acabo de incluir mais um item na lista de mudanças. Parar de questionar por que eu, feminista, venho inconscien­temente agindo como se fosse a única responsáve­l pelo bem-estar da família. Vou me reconectar com o feminismo – e fazer de tudo para que essa não seja uma promessa de Scarlett O’Hara, um “amanhã eu penso nisso”.

Já são 13 horas. Ouvi um resmungo. A pequena está acordando agora, com horários bagunçados na quarentena. Não vou me preocupar. Vou resolver. Vai ser meu primeiro ato como a Carla da segunda-feira.

PS: O marido foi para pia atacar as panelas. Gastei aqueles 5 minutos na sala e comecei a editar parte das reportagen­s que você está lendo aqui. Só a minha filha mais velha de fato acordou. São 13h30.

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