LINA MERUANE E A ESCRITA COMO PATOLOGIA
No romance ‘Sistema Nervoso’, a escritora chilena investiga a obsessão com o corpo com suas doenças
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Atenção: este livro é contraindicado para hipocondríacos. Doenças de todos os tipos atravessam um clã formado por uma filha astrofísica (Ela, a narradora), seu severo Pai médico, sua ambígua Mãe adotiva (a mãe biológica morreu no nascimento da narradora), seu irmão Primogênito rancoroso e seus belicosos e gordos irmãos Gêmeos. Se já nos inclinamos na direção da morte assim que nascemos, se o corpo é tudo o que existe e se pelo corpo passa toda a ficção, nossa história não passa de um histórico médico, sugere Lina Meruane.
A premissa já existia no romance anterior da autora de 49 anos, que desde a estreia, saudada pelo compatriota Roberto Bolaño, se consolida como um dos principais nomes da literatura hispânica. Em Sangue no Olho (2012), uma escritora chilena morando em Nova York sofre de uma cegueira progressiva que vai inundando de sangue seus olhos, afastando-a do mundo, fazendo-a negar sua pátria natal (seu corpo natal) e entrando em conflito com o novo país e o namorado. O corpo doente protagoniza ainda o romance Fruta Podrida (2007) e o ensaio Viajes Virales (2012), em que investiga o impacto da aids na América Latina. Como em Sangue no Olho, adotar uma patologia física para dar velocidade de thriller à narrativa – como diria o doutor Gregory House, o que seria um diagnóstico senão a solução de um crime? –, ao mesmo tempo que se usa o campo semântico da doença para investigar a realidade, são também os centros de gravidade deste Sistema Nervoso.
Os doentes familiares são uma obsessão para Ela, que não terminou sua tese de doutorado em astrofísica (sobre buracos negros) mas ela esconde esse fato do Pai, que lhe financiou os estudos (e com isso arruinou a família). Sem conseguir escrever, sonha em ganhar uma doença não muito grave para poder focar na escrita. Ela vive entre o país presente (EUA) e o país passado (Chile) e se enrola entre as duas línguas. Seu namorado, Ele, um antropólogo forense, se dedica a identificar ossos para combater a violência. O país passado adoece de militarismo; no país presente, imigrantes ilegais lutam contra a xenofobia. Do micro ao macro, do pó dos ossos à poeira de estrelas, corpos humanos e galáxias distantes corroem-se mutuamente.
Mas corrosão seria uma imagem rasa para tratar o impacto da escrita de Meruane. Não linear, o texto é um Frankenstein, cheio de fraturas, cicatrizes, retalhos, fragmentos como secções de um corpo humano – o livro seria então a metáfora de uma metástase de sinédoques, interligadas e sistematizadas pelo conceito físico da carnalidade: “Um cérebro como um
livro aberto (...) não ser mais que sinapses era muito animal”.
Há uma passagem, por exemplo, em que a Mãe trata um câncer no seio. Da quimioterapia, Meruane salta a um fragmento memorialístico: o veneno aplicado aos ratos que viviam no sótão da casa da família. Por sua vez, a imagem dos ratos se relaciona a dois temas da ditadura chilena: os militantes assassinados eram chamados de ratos; e ratos vivos eram enfiados nas vaginas das presas. O campo semântico dos ratos, seres que vivem e se movem nas penumbras,
faz fronteira com o território de outro animal: o caranguejo – símbolo do câncer, doença que se move sorrateira pelos órgãos, feito um artrópode por dentro da areia, sub-reptício, de lado, vagaroso e traiçoeiro. Esse tipo de associação de ideias e imagens aproxima a forma do romance do lirismo e do experimentalismo narrativo. Filhos do carbono e do amoníaco e afilhados de Augusto dos Anjos, só podemos aplaudir a riqueza e o estranhamento desse léxico. As investigações médicas são onipresentes e surgem frases de rara beleza: “A ressonância é o uivo cego da medicina. Um raio sonoro de imagens na impenetrável opacidade do corpo”.
Apesar de usar metáforas, o romance
de Meruane nunca é metafórico. Ela corrobora a tese central de A Doença como Metáfora, de Susan Sontag, em que o uso literário das doenças acaba por se alastrar alegoricamente sobre os adoentados tornandoos vetores de culpas e pecados.
Isso inexiste no universo de Meruane, onde tudo é doença – pois estar doente é estar vivo. “Não seríamos humanos sem experimentar as doenças”, disse Nietzsche. “A doença é um fragmento do real, um pedaço excluído de cada cultura – e o doente é seu ‘cavalo’, como se diz em umbanda: é por onde a doença conseguiu se manifestar”, escreveu Maria Rita Kehl em O Tempo e o Cão. Nesta época de medicalização extrema, separamos o mundo dos doentes e dos saudáveis (e Cortázar já questionava essa fronteira no conto A Saúde dos Doentes). Meruane defende que estamos sempre doentes ou em vias de adoecer, apenas não sabemos como, quando e de quê: estaremos mais íntegros quanto mais conscientes de nossa própria destruição próxima, seja individual, seja como espécie.
Há outros subtemas neste estranho livro, como o planeta doente refletindo-se no mal-estar humano (e vice-versa – não estamos destruindo a Terra neste exato momento, não seríamos nós o câncer da Terra?). E o romance todo é sutilmente atravessado pela dinâmica pai-filha. Ela, uma astrofísica, é a negação do Pai, um médico, mas é ele quem a financia, e é ela quem cuida dele quando ele é internado – Meruane descreve com minúcia os rituais do kafkiano universo hospitalar. “Seu sistema nervoso guardava a memória falha torta inútil de um dano e continuava a revivê-lo, essa era uma explicação.” Saber o que esquecer e lembrar vira um jogo de poder entre pai e filha – que ela só vence por deter a escrita dos acontecimentos. Mas, para escrever, tem de adoecer. A única cura para a literatura é a própria doença.
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É ESCRITOR E JORNALISTA, AUTOR DO ROMANCE ‘ESCALPO’ (REFORMATÓRIO), ENTRE OUTROS
MERUANE DEFENDE QUE ESTAMOS SEMPRE DOENTES OU EM VIAS DE ADOECER