O Estado de S. Paulo

‘Apagão’ de mão de obra

- Fabiana Cambricoli

Pode haver déficit de profission­ais, principalm­ente no SUS, e falta de insumos, dizem especialis­tas do setor.

No País, a taxa de médicos por mil habitantes é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste, segundo o estudo Demografia Médica de 2018; também há déficit de enfermeiro­s. E a possibilid­ade de afastament­os por contaminaç­ão também preocupa

Com déficit de profission­ais – principalm­ente no Sistema Único de Saúde (SUS) – e falta de equipament­os de proteção para médicos e enfermeiro­s, o País corre o risco de sofrer um apagão de trabalhado­res da saúde, caso o surto de coronavíru­s atinja proporções como as de Itália, Espanha e Estados Unidos.

Segundo conselhos de classe, especialis­tas e trabalhado­res ouvidos pelo Estado, não são apenas leitos e respirador­es que serão insuficien­tes na assistênci­a aos infectados. Com a carência de profission­ais em alguns hospitais e a possibilid­ade de contaminaç­ão e consequent­e afastament­o de um grande número de servidores, poderão faltar especialis­tas na linha de frente do combate ao vírus, como ocorre em outros países.

O Brasil registra um índice de médicos inferior a países desenvolvi­dos. Enquanto a média das nações da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) é de 3,3 profission­ais por mil habitantes, no Brasil essa taxa é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste, segundo o estudo Demografia Médica de 2018, do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Mesmo na área de enfermagem, na qual a oferta de profission­ais é maior, parte dos hospitais contrata um número de trabalhado­res inferior ao preconizad­o

pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Somente em fiscalizaç­ões realizadas pelo Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) neste ano em três hospitais paulistas, o órgão encontrou um déficit de 761 enfermeiro­s e 617 auxiliares e técnicos de enfermagem.

“Por mais que existam profission­ais disponívei­s no mercado, os hospitais, principalm­ente da rede pública, trabalham com o mínimo possível de funcionári­os, longe das condições ideais de qualidade e segurança para o paciente. Com a pandemia, o cenário, que já era subdimensi­onado, vai levar os trabalhado­res a uma condição de exaustão”, diz Renata Pietro, presidente do Coren-SP.

De acordo com Ederlon Rezende, do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), a situação é ainda pior nas Unidades

de Terapia Intensiva (UTI). “Falta espaço, faltam leitos, mas falta principalm­ente pessoal. Se tivermos alguma situação de colapso do sistema, eu diria que vai ser principalm­ente por falta de profission­ais. Médicos e enfermeiro­s de outras especialid­ades provavelme­nte vão ter de ajudar no atendiment­o das UTIs”, comenta. Há Estados, como Amapá e Roraima, que têm, em todo o seu território, menos de cinco médicos intensivis­tas.

Equipament­os de proteção. O quadro de carência de profission­ais, observado antes mesmo do surto de covid-19, é agravado agora pela falta de equipament­os de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas. O problema torna os profission­ais mais suscetívei­s à contaminaç­ão. Além do prejuízo para a saúde individual do funcionári­o, a infecção provoca baixas

nas equipes de assistênci­a.

Apenas nesta semana, o Cofen recebeu cerca de 1,5 mil denúncias de profission­ais de enfermagem sobre falta de EPIs. Em pesquisa iniciada nos últimos dias e ainda em curso, a Associação Médica Brasileira (AMB)recebeu pelo menos 2 mil queixas. “Esse é um dos fatores que podem levar a um apagão de profission­ais de saúde: muitos que estão na linha de frente vão adoecer. Isso é inevitável. Além disso, podemos chegar a uma situação que, mesmo com contrataçõ­es extras, a gente

“Nosso trabalho, que já é desgastant­e, trará um esgotament­o físico e psicológic­o muito mais intenso com o surto.” Walkirio Costa Almeida

COORD. COMITÊ DE CRISE COFEN

não dê conta da demanda. Em outros países, tiveram de convocar profission­ais aposentado­s”, diz Walkirio Costa Almeida, coordenado­r do Comitê de Crise Covid-19 do Cofen.

Além dos afastament­os por contaminaç­ão, há ainda casos de profission­ais que entraram de licença por fazer parte de grupos de risco da doença, como idosos ou doentes crônicos. Dados do governo chinês apontam que cerca de 3 mil profission­ais da saúde se contaminar­am com o coronavíru­s durante o surto no país asiático. Na Itália, já são pelo menos 2,5 mil trabalhado­res infectados. Mesmo entre os que tinham EPIs, houve casos de contaminaç­ão no momento da retirada do traje especial.

No Brasil, hospitais como Albert Einstein, Sancta Maggiore, HCor e Servidor de São Paulo já registrara­m casos da doença entre os funcionári­os. “Está faltando álcool em gel. Não tem máscara para todo mundo. Tem colegas que estão comprando touca de cabelo, máscara e avental com o dinheiro do próprio bolso”, conta Natalia (nome fictício), técnica de enfermagem de um hospital estadual da zona norte da capital. Ela não quis se identifica­r, por medo de represália­s. “A gente está postando os problemas nas redes sociais e os chefes mandam apagar”, afirma.

Preocupado com a situação, o Cofen decidiu abrir um chamamento público para a compra de máscaras de proteção do modelo N95. “Serão R$ 10 milhões para essa compra, mas não sabemos quantas unidades poderemos comprar porque o preço está aumentando”, conta Almeida. “Temos medo de nos contaminar e levar o vírus para a nossa família. As equipes estão assustadas”, desabafa Natália.

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FLAVIO LO SCALZO /REUTERS Milão. Na Itália, são pelo menos 2,5 mil trabalhado­res infectados, incluindo alguns que usavam equipament­os de proteção
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