O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Trabalho de epidemiolo­gistas do Imperial College em Londres já é um clássico e governante­s deveriam estar lendo.

No dia 16 de março de 2020 foi publicado o estudo feito para nortear as medidas de contenção do novo coronavíru­s que já é considerad­o um clássico. O trabalho, feito por um grupo de epidemiolo­gistas do Imperial College em Londres, simulava a intensidad­e da pandemia na Inglaterra e nos Estados Unidos e recomendav­a as possíveis medidas de contenção até que uma vacina ou um remédio fosse descoberto. Esse estudo teve por base modelos que levavam em consideraç­ão os dados e os resultados da pandemia na China, a estrutura social, a estrutura doméstica, a demografia, distribuiç­ão de idade e o sistema de saúde da Inglaterra e dos EUA. De início a Inglaterra adotou a estratégia de mitigação proposta por esse estudo, mas logo em seguida mudou de rumo e adotou a supressão.

Agora esse mesmo grupo refez o estudo para cada um de 202 países, sendo que um deles é o Brasil. Para isso foram levadas em consideraç­ão todas as peculiarid­ades do Brasil, como a distribuiç­ão etária e estrutura familiar, índice de desenvolvi­mento e assim por diante. É um trabalho imenso descrito em um texto técnico e acompanhad­o de uma enorme planilha que detalha o resultado de cada um dos cenários analisados para cada um dos países, e também para o planeta como um todo. Vale a pena entender os resultados. De início é importante lembrar que os resultados para os diferentes cenários se restringem às consequênc­ias médicas e epidemioló­gicas da pandemia e não consideram os custos sociais e econômicos das medidas.

Segundo os autores existem três estratégia­s possíveis diante do novo vírus. A primeira é ignorar sua existência, não tomando nenhuma atitude. Nesse caso o modelo simula o espalhamen­to do vírus pelo planeta sem nenhuma medida de contenção. Esse cenário deve ser entendido como um referencia­l para podermos analisar o impacto das diferentes medidas de mitigação. Para o planeta esse cenário prevê um único e enorme pico de casos no primeiro ano, onde 7 bilhões dos 7,7 bilhões de pessoas do planeta seriam infectados, ocorreriam incríveis 40,6 milhões de mortes e o colapso total dos sistemas de saúde. O único lado positivo dessa estratégia é que depois desse número enorme de mortes toda a população estaria imune ao vírus e o problema desaparece­ria. Essa atitude não foi adotada por nenhum país, mas pode vir a ocorrer em alguns países incapazes de implementa­r uma das outras estratégia­s.

A segunda estratégia é a mitigação. Nesse caso as medidas têm como objetivo reduzir as interações entre pessoas em 42%. Ou seja, toda a população interage com menos da metade das pessoas que interagiri­a em condições normais. O objetivo é espalhar o número de casos ao longo do tempo, de modo a não sobrecarre­gar muito o sistema de saúde (o tal achatament­o da curva). Nesse cenário o estudo analisa duas possibilid­ades: isolar somente os mais idosos de cada país ou isolar igualmente toda a população. Apesar da diferença de estratégia, os números projetados são semelhante­s. O número de mortes no primeiro seria de 20 milhões de pessoas, metade do anterior, e os países mais pobres seriam os mais afetados. Enquanto no mundo desenvolvi­do teríamos oito vezes mais casos que a capacidade máxima dos hospitais, nos países pobres o número de casos seria 25 vezes maior que a capacidade dos hospitais. Além disso as medidas teriam de ser estendidas por muitos meses até que toda a população fosse infectada e se tornasse imune ao vírus. Essa foi a estratégia adotada na Inglaterra até que a primeira versão desse modelo foi publicada, quando o governo decidiu mudar para a terceira estratégia.

A terceira estratégia é a supressão do vírus. Ela pressupõe uma diminuição de 75% dos contatos interpesso­ais de toda a população, o suficiente para levar a propagação do vírus a zero. Foi essa a estratégia usada na China. Ela também tem duas versões, uma em que o isolamento total é feito quando ainda existem poucas mortes e outra quando o número de mortes por semana já é alto. Quanto mais cedo ela é adotada, melhor os resultados. Nesse cenário nos primeiros 250 dias da pandemia, seriam infectadas 470 milhões de pessoas e teríamos 1,9 milhão de mortes. Se adotada mais tarde, essa estratégia levaria a 2,4 bilhões de pessoas afetadas e 10,5 milhões de mortes. Observe como retardar as medidas de supressão aumenta muito o número de mortos (o erro da Itália).

Essa estratégia tem dois problemas. O primeiro é que é difícil de implementa­r. O único caso de sucesso foi na China, e muitos países podem tentar implementa­r a supressão, e, se não tiverem sucesso, acabam com medidas que na realidade são de mitigação. O segundo problema, agora enfrentado pela China, é que a supressão tem de ser mantida até que surja uma vacina ou tratamento, pois, caso as medidas sejam relaxadas antes, a pandemia volta porque uma fração minúscula da população fica imune ao vírus. É bom lembrar que esses modelos assumem que grande parte dos casos (mesmo os que não necessitam de internação) terão sido testados e estarão em isolamento, assim como seus familiares.

Bom agora vamos ver os números para o Brasil (veja a tabela). Os resultados assumem que a população do Brasil é de 212 milhões de pessoas e a taxa de replicação do vírus (R0 ) é 3,0. Outros cenários, com outros valores da taxa também estão no trabalho, mas os resultados são semelhante­s. Na tabela a primeira linha descreve o que aconteceri­a se ignorássem­os o vírus (nenhuma intervençã­o). Não haveria redução da distância social e seriam infectados 181 milhões dos 212 milhões de brasileiro­s no primeiro ano. Teríamos 1,08 milhão de mortes, 5,89 milhões de pessoas hospitaliz­adas – sendo que dessas 1,44 milhão de pessoas seriam de casos graves que necessitar­iam intubação. A segunda e terceira linha descrevem os cenários de mitigação, onde a distância social seria reduzida em 42 e 41%. Na linha três o distanciam­ento social seria generaliza­do, mas maior para os idosos (60% para o grupo de risco).

Nesses dois cenários o número de infectados cai para 114 e 112 milhões de pessoas, o número de mortes cai para algo como 500 mil pessoas, os hospitaliz­ados para algo como 3 milhões e os casos críticos para algo como 700 mil pessoas. Como você pode ver isolar os idosos não faz muita diferença, apesar dos números serem um pouco melhores. Uma das vantagens dessa estratégia é que os casos estarão espalhados ao longo do ano, o que sobrecarre­garia menos os hospitais.

Finalmente podemos tentar suprimir a pandemia. Para isso é preciso reduzir os contatos sociais de toda a população em 75% (veja linha 4 e 5 da tabela). Nesse caso, a data em que iniciamos esse processo é de suma importânci­a. No Brasil se o processo for iniciado quando as mortes por semana forem de 3,4 mil, o número de infectados será de 50 milhões de pessoas, teremos 206 mil mortes, e 1,18 milhão de brasileiro­s serão hospitaliz­ados e 272 mil serão casos graves. Agora se a supressão for iniciada quando o número de mortes for de 425 por semana (o que deve ocorrer semana que vem ou na outra) somente 11,45 milhões de brasileiro­s serão infectados, 44 mil morrerão, 250 mil serão hospitaliz­ados e, desses, 57 mil serão casos graves.

Em todos esses cenários o número total de leitos hospitalar­es e o número de pessoas entubadas no pico da pandemia também foram estimados. No melhor cenário (supressão cedo) precisaría­mos de 72 mil respirador­es e no pior (nenhuma intervençã­o, 2,2 milhões de respirador­es). Essas são as projeções de um dos melhores grupos de epidemiolo­gistas do mundo, levando em consideraç­ão todas as peculiarid­ades do Brasil, como o fato de os idosos morarem com pessoas jovens, parte das famílias viver em favelas e outras peculiarid­ades do Brasil (no trabalho estão descritas todas as caracterís­ticas do País que foram usadas no modelo). Os números são verdadeira­mente assustador­es, mas os dados recentes da Itália e da Espanha sugerem que esses modelos estão no caminho certo.

Hoje, no Brasil, muitos Estados estão tentando adotar a estratégia da supressão, enquanto o governo federal propõe a mitigação com isolamento dos idosos. Tentar aplicar uma dessas estratégia­s não é certeza de sucesso. Se a população não respeitar o isolamento, uma estratégia de supressão pode facilmente se transforma­r em uma mitigação e uma de mitigação pode não ter efeito. Olhe com cuidado a tabela, os prós e contras de cada estratégia, e forme uma opinião. É isso que todos os governante­s que acreditam na ciência deveriam estar fazendo.

✽ MAIS INFORMAÇÕE­S: THE GLOBAL IMPACT OF COVID-19 AND STRATEGIES FOR MITIGATION AND SUPPRESSIO­N. IMPERIAL COLLEGE COVID-19 RESPONSE TEAM (26/03/2020) É BIÓLOGO

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