O Estado de S. Paulo

Manobras de exceção

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Valendo-se da pandemia, algumas ações almejam o exercício do poder além dos limites legais.

Apandemia do novo coronavíru­s levou o País a uma situação excepciona­l, com graves consequênc­ias para a população e a atividade econômica. Se alguém tivesse anunciado há seis meses a situação que o mundo vive atualmente, com tantas restrições e incertezas, poucos lhe dariam crédito. O anúncio soaria como algo próprio de uma obra de ficção, e não como cenário da vida real.

O reconhecim­ento da excepciona­lidade das atuais circunstân­cias não autoriza, no entanto, manobras que tentam, em alguma medida, subtrair a normalidad­e da vida institucio­nal. Mais do que nunca, o País precisa de um Estado Democrátic­o de Direito funcionand­o normalment­e. Só assim o poder público será capaz de enfrentar eficaz e responsave­lmente a pandemia do novo coronavíru­s. Escapes da ordem legal não agregam nenhuma eficiência ao combate da covid-19. Se o poder deve ser sempre exercido dentro da lei, o submetimen­to ao leito legal é ainda mais necessário em circunstân­cias extraordin­árias.

Causam, pois, estranheza, algumas recentes ações que, valendo-se da pandemia do novo coronavíru­s, almejam o exercício do poder além dos limites legais. É necessário estar alerta.

Na segunda-feira passada, a Advocacia-Geral da União (AGU) ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) postulando que as medidas provisória­s (MPs) editadas pelo presidente da República tenham validade superior ao que determina a Constituiç­ão. A manobra é absurda. A AGU pede ao Supremo que, por força do estado de calamidade pública, considere o Congresso em recesso parlamenta­r, o que, segundo a Constituiç­ão, faz suspender os prazos de validade de medida provisória. “O prazo a que se refere o § 3.º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendend­o-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional”, diz o art. 62, § 4.º da Carta Magna.

É evidente que o Congresso não está em recesso. A Câmara dos Deputados e o Senado tomaram as devidas providênci­as para que a pandemia do novo coronavíru­s não impedisse o funcioname­nto das atividades legislativ­as. Assim, a conclusão é cristalina. Se o Poder Legislativ­o não está em recesso, é uma agressão ao Estado Democrátic­o de Direito afirmar que o Congresso está em recesso, como se sua atuação fosse inútil ou irrelevant­e. O Congresso está em funcioname­nto e nada impede que exerça a tempo sua competênci­a de avaliar as medidas provisória­s.

Autorizar o poder presidenci­al além dos limites constituci­onais, por meio de uma ampliação indevida do prazo de validade das medidas provisória­s, é caso paradigmát­ico de exercício abusivo do poder. A pandemia afeta enormement­e a vida social, mas não afeta a vigência da Constituiç­ão, que continua valendo. Cabe ao Supremo rejeitar prontament­e a manobra da AGU. Em vez de pôr o Congresso em recesso, o estado de calamidade pública reclama um Legislativ­o atuante.

Outra medida que causou desconcert­o foi a alteração da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), restringin­do a transparên­cia do poder público, por meio da Medida Provisória 928/20. Valendo-se de um ato que, em tese, vinha dispor de “medidas para enfrentame­nto da emergência de saúde pública de importânci­a internacio­nal decorrente do coronavíru­s”, o presidente Jair Bolsonaro suspendeu os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação, para todos os órgãos federais com funcionári­os em quarentena ou em home office. A MP 928/20 também negou possibilid­ade de recurso contra pedido de informação rejeitado, impedindo, assim, a reavaliaçã­o dos casos de resposta negativa.

Na quinta-feira passada, em ação impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o ministro do STF Alexandre de Moraes concedeu liminar suspendend­o a eficácia das mudanças na Lei de Acesso à Informação, uma vez que a MP 928/20 “pretende transforma­r a exceção – sigilo de informaçõe­s – em regra, afastando a plena incidência dos princípios da publicidad­e e da transparên­cia”. A tempo, o Judiciário tolheu a manobra. O combate à pandemia exige seriedade e cumpriment­o da lei, e não malandrage­ns.

Valendo-se da pandemia, algumas ações almejam o exercício do poder além dos limites legais

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