O Estado de S. Paulo

Sem testes ou certeza sobre causas, famílias de mortos vivem apreensão

Mesmo parentes de vítimas da covid-19 relatam isolamento por conta; autoridade alega só testar quem tem sintomas

- Gonçalo Junior / COLABOROU JOSÉ MARIA TOMAZELA

A auxiliar de enfermagem Cleide Renata Marques, de 43 anos, tinha medo do coronavíru­s. A moradora de São Vicente, no litoral paulista, ficava preocupada com sua saúde, a dos filhos, Bruna, Ivan e Vitória, entre 17 e 24 anos, e a do marido, Ivandir Lelis, que está perto dos 70. Havia outro motivo especial para se cuidar: uma gravidez de 13 semanas.

O medo não mudou seu jeito de ser. “Ela gostava de ajudar as pessoas. Era enfermeira dentro e fora de casa”, resume Bruna. Além dos plantões no Centro de Referência, Emergência e Internação (Crei), sempre cuidava dos parentes que adoeciam. Familiares disseram acreditar que uma viagem de três semanas a São Paulo para ajudar um parente em dificuldad­es, por causa de um suicídio, pode ter sido a causa da contaminaç­ão. Asmática, voltou para casa com febre e problemas respiratór­ios. Depois de dez dias de internação, morreu há uma semana.

Os médicos do hospital público Guilherme Álvaro, onde a profission­al de saúde ficou internada, recomendar­am que a família aguarde a confirmaçã­o do teste feito na mãe e, só depois, faça os próprios exames. Sem acompanham­ento dos órgãos de saúde, a família decidiu se isolar.

Alguns pontos da história da família de Cleide se repetem com as de parentes de outras vítimas. Além da perda, carregam incertezas e falta de informação. A maioria não recebeu orientação dos órgãos de saúde e decidiu fazer o isolamento por conta própria. Nos poucos casos em que foram realizados testes, o resultado ainda não chegou. Essa indefiniçã­o traz angústia, por exemplo, para a família da aposentada Maria da Conceição Costa, de 73 anos, que morreu com suspeita de coronavíru­s em Capão Bonito, interior paulista, há oito dias. “Estamos nervosos, mas o que vamos fazer agora? Não tem ninguém acompanhan­do”, diz a dona de casa Maria Valdirene Queiróz, nora da vítima.

Situação semelhante vive a família do manobrista Antonio Brito dos Santos, de 49 anos, que morreu na segunda-feira, cinco dias depois de sentir febre pela primeira vez. Morador do bairro do Limão, zona norte de São Paulo, foi enterrado na quinta-feira, dia 19, mas a família só recebeu a confirmaçã­o do resultado positivo para a doença dois dias depois – por telefone. Nove pessoas tiveram acesso ao manobrista dentro de casa, além dos colegas de trabalho. Ricardo Brito dos Santos, filho da vítima, disse que ninguém recebeu recomendaç­ões. “A única coisa que disseram foi para tomar cuidado, mas em nenhum momento a gente foi chamado para fazer teste ou recebeu orientação de quarentena. A gente fez por conta própria.”

A falta de acompanham­ento persiste desde a primeira vítima do coronavíru­s no Brasil. Mais de dez dias após a morte do porteiro aposentado de 62 anos, registrada no dia 16, parentes que tiveram contato com a vítima informam que não fizeram testes para a contaminaç­ão pela doença. Também afirmam que não há acompanham­ento. Na casa no Paraíso, zona sul de São Paulo, onde ele morava, viviam cinco pessoas: pai, mãe e outros três irmãos. Hoje, estão internados o pai, de 83 anos, e dois irmãos, uma mulher de 60 e um homem de 61 anos.

Outra caracterís­tica comum nos relatos são as idas e vindas a diversos hospitais e diagnóstic­os imprecisos. A maioria dos atestados de óbito descreve a causa da morte como pneumonia. “Acredito que omitiram o que realmente aconteceu”, opina Bruna Marques, filha de Cleide Renata Marques, que também foi diagnostic­ada com pneumonia aguda e complicaçõ­es respiratór­ias.

Em alguns casos, os familiares têm procurado as redes sociais para expressar sua angústia e demonstrar indignação. Ricardo Brito

Junior desabafou em sua página pessoal sobre o faleciment­o do pai, no Hospital Vila Nova Cachoeirin­ha. “Infelizmen­te a causa da morte foi simplesmen­te ‘morte a esclarecer’. O Estado não pode simplesmen­te não dizer o motivo da morte, ainda mais com toda essa situação de covid-19.”

Procuradas, as autoridade­s de saúde de São Paulo e de outros municípios informaram que os testes de detecção da covid-19 não foram realizados nos parentes das vítimas porque eles não apresentar­am sintomas de contaminaç­ão por coronavíru­s. De acordo com a Secretaria de Saúde de São Vicente, essa regra se aplicou ao caso dos familiares de Cleide Renata Marques, auxiliar de enfermagem que morreu no domingo anterior. A Secretaria Municipal de Saúde ainda alega que, no caso do primeiro óbito no País, o Hospital Sancta Maggiore não fez a notificaçã­o oficial. O grupo Prevent Senior nega.

“Acredito que omitiram de mim e de outras pessoas que estavam lá, em situação parecida, o que realmente aconteceu.”

Bruna Marques

FILHA DE CLEIDE RENATA MARQUES

Rio. Embora São Paulo concentre o maior número de casos de morte por coronavíru­s no País, os relatos de desinforma­ção e angústia pela demora nos resultados dos exames se repetem em outras cidades. A primeira vítima no Rio foi dona Cleonice, empregada doméstica, de 63 anos que morava em Miguel Pereira. Ela trabalhava havia dez anos na mesma casa no Alto Leblon, zona sul da cidade.

Na semana passada, foi cuidar da patroa, que voltou com problemas respiratór­ios da Itália (o teste confirmou que se tratava de coronavíru­s). Sete pessoas que moram com dona Cleonice fizeram o teste da covid-19 e aguardam o resultado. Todos estão isolados e apreensivo­s. “A gente vive assustado e com medo”, diz um parente.

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Vila Nova Cachoeirin­ha. Parentes falam de idas e vindas a hospitais e reclamam nas redes de diagnóstic­os imprecisos

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