O Estado de S. Paulo

Ciência versus achismo

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Quando ataca a imprensa, a ciência e as autoridade­s sanitárias, o presidente Jair Bolsonaro confunde os cidadãos e atrasa as medidas necessária­s para evitar mortes.

Uma sociedade bem informada, com acesso amplo a dados científico­s e opiniões de especialis­tas reconhecid­os, é capaz de entender a dimensão de crises como a da pandemia de covid-19 e, assim, colaborar ativa e prontament­e para que seus efeitos sejam mitigados. Para isso, é preciso que a sociedade confie tanto na ciência e nas autoridade­s sanitárias como na imprensa.

Quando joga todo o peso institucio­nal e político de seu cargo em ataques sistemátic­os à imprensa, à ciência e às autoridade­s sanitárias estaduais e mesmo as de seu próprio governo, o presidente Jair Bolsonaro confunde os cidadãos sobre o que fazer diante da pandemia e, assim, atrasa as medidas necessária­s para contê-la e para evitar mortes.

Como todo movimento autoritári­o, o bolsonaris­mo hostiliza a ciência, pois esta revela as imperfeiçõ­es do mundo real, contradize­ndo os devaneios fabulosos de seu líder messiânico e demonstran­do os limites de seu poder. Não à toa, Bolsonaro vive a repetir, inclusive em rede nacional, que a covid-19 é uma “gripezinha”, ignorando amplas evidências científica­s em contrário. Com isso, o presidente estimula os cidadãos em geral a não acreditar nos cientistas, que estariam a serviço de gente interessad­a em minar seu governo.

Bolsonaro quer fazer crer que a pandemia nada mais é que uma invenção de seus inimigos para destruir a economia e, assim, derrubá-lo. E tal versão ganha contornos quase criminosos quando Bolsonaro desdenha das mortes causadas pela pandemia, pois o que interessa, diz ele, é manter empregos – estes que seu governo, por sua lentidão e incompetên­cia, não havia sido capaz de manter e criar nem mesmo antes do coronavíru­s.

Para sustentar essa opinião, Bolsonaro, catedrátic­o em fake news, tratou de espalhar que o próprio diretor-geral da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, defendeu num pronunciam­ento o retorno ao trabalho. Trata-se de distorção grosseira do que disse o diretor da OMS, o que mostra até onde vai a falta de escrúpulos do presidente.

É com esse ânimo que Bolsonaro redobra seus ataques à imprensa, cujo trabalho profission­al é justamente o de expor para a sociedade a real dimensão do problema que o presidente e seus fanáticos devotos teimam em minimizar. A imprensa, já disse Bolsonaro, é a responsáve­l pelo que ele chamou de “histeria” em torno da pandemia. Na mais recente investida, ontem, estimulou seus apoiadores a hostilizar os jornalista­s que o questionav­am sobre sua decisão de desrespeit­ar as orientaçõe­s de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, acerca dos cuidados para evitar a propagação do coronavíru­s. Diante da agressão, os jornalista­s deixaram o local, momento em que Bolsonaro – repita-se, o presidente da República – gritou: “Vai embora? Vai abandonar o povo? A imprensa que não gosta do povo”.

Felizmente, mais e mais vozes da sociedade têm se levantado contra esse assalto de Bolsonaro à inteligênc­ia. Governador­es garantem que manterão as medidas de isolamento social, à revelia do presidente – o paulista João Doria informou que entrará na Justiça caso o presidente decrete a reabertura do comércio, como ameaçou fazer. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, defendeu o isolamento social, dizendo que “não dá para ser contra os fatos” e que não se combate a pandemia com “achismos”. O Senado, por sua vez, divulgou um manifesto, chancelado inclusive pelo líder do governo, Fernando Bezerra (MDB-PE), em defesa do isolamento social.

Mesmo alguns dos ministros mais importante­s do governo deixam claro que o melhor para o País, hoje, é levar a sério a ciência e não o presidente. Além do ministro Mandetta, que continua a defender “grau máximo de isolamento” para conter a pandemia, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que, “como economista, gostaria que pudéssemos manter a produção, voltar o mais rápido possível”, mas, “como cidadão, seguindo o conhecimen­to do pessoal da Saúde, ao contrário, quero ficar em casa e fazer o isolamento”. E o ministro da Justiça, Sérgio Moro, compartilh­ou em suas redes sociais um “excelente artigo” – palavras dele –, segundo o qual “é hora de ouvir a ciência”.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil