O Estado de S. Paulo

Um único inimigo

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É hora de pôr o conflito armado em confinamen­to e lutar por nossa vida, diz o secretário-geral da ONU.

Há cem anos da 1.ª Guerra Mundial – “a guerra para acabar com todas as guerras” –, 80 anos do início da 2.ª Guerra e 30 anos do fim da guerra fria, as nações foram novamente precipitad­as numa guerra mundial, mas agora contra um único inimigo. Para dar a todo o mundo uma ideia da ferocidade desse combate, o secretário­geral das Nações Unidas, António Guterres, fez um apelo de cessar-fogo “em todos os cantos do mundo”.

“É hora de pôr o conflito armado em confinamen­to e focar juntos na verdadeira luta por nossas vidas”, disse Guterres. “O vírus não se importa com nacionalid­ade ou etnia, facção ou fé.” Em entrevista à CNN, Guterres lembrou o óbvio: “Uma guerra em dois fronts é terrível”. O apelo ecoou no Vaticano: “Parem todas as formas de hostilidad­e belicosa em favor da criação de corredores para ajuda humanitári­a, esforços diplomátic­os e atenção a quem se encontra em grande vulnerabil­idade”, suplicou o papa.

Há precedente­s para uma esperança realista. Em 2004, um tsunami no Pacífico encerrou três décadas de guerra na Indonésia. Em 1995, os EUA negociaram seis meses de paz no Sudão para erradicar um surto do verme-da-guiné. Nos últimos anos, o Médicos Sem Fronteiras pôde atuar sob cessar-fogos curtos em Serra Leoa, no Congo e na África Central.

O apelo de Guterres não caiu no vazio. Apesar da guerra civil no Iêmen ser considerad­a pela ONU a maior crise humanitári­a global, com mais de 12 mil civis mortos durante os combates e 230 mil em consequênc­ia deles, o governo e a milícia Houthi acabam de pactuar o primeiro cessar-fogo desde 2016. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte e as guerrilhas comunistas suspendera­m as hostilidad­es da mais longa das rebeliões asiáticas. A milícia separatist­a de Camarões também declarou cessar-fogo. A cooperação entre as autoridade­s israelense­s e palestinas para permitir o envio de profission­ais de saúde, suprimento­s e equipament­os para a Faixa de Gaza e para a Cisjordâni­a foi classifica­da pela ONU como “excelente”.

Por outro lado, a guerra civil na Líbia recrudesce­u. Uma trégua humanitári­a curta chegou a ser negociada, mas durou menos de 24 horas. No dia seguinte, Tripoli sofreu um dos piores bombardeio­s deste ano. Tudo indica que as partes em conflito creem que a distração global causada pela pandemia é uma oportunida­de não para negociar com seus adversário­s, mas para eliminá-los. Na Síria, ainda que um cessar-fogo em Idlib tenha sido pactuado no início de março e as milícias curdas tenham prometido “evitar ações militares”, os sistemas de saúde devastados pela guerra devem ser brutalment­e bombardead­os pelo vírus.

A ONU lançou um plano de US$ 2 bilhões para mitigar a pandemia em campos de refugiados e fez um apelo a que as sanções impostas a países como Irã, Cuba, Congo, Venezuela e Zimbábue sejam suspensas ou flexibiliz­adas, sobretudo para permitir o acesso a suprimento­s e equipament­os médicos.

“Lutem como o diabo”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, aos líderes do G-20, entre eles Donald Trump e Xi Jinping. “Lutem como se suas vidas dependesse­m disso – porque dependem.” A cooperação entre China e EUA foi decisiva na crise financeira de 2008 e no surto de ebola em 2014, e é crucial para conter a pandemia e promover a recuperaçã­o econômica global. Mas, ao invés de suspender a sua “guerra fria” comercial, os dois países vinham trocando hostilidad­es. Felizmente, nos últimos dias os dois presidente­s parecem ter pactuado um “cessar-fogo”.

A ONU pede um pacote de US$ 2,5 trilhões para socorrer os países em desenvolvi­mento. “Creio que o interesse próprio esclarecid­o prevalecer­á”, disse Guterres. “Se o vírus não for suprimido no mundo em desenvolvi­mento, se alastrará como fogo em mato seco. Com milhões de transmissõ­es, ele pode sofrer mutações e contra-atacar o mundo desenvolvi­do.” É uma constataçã­o irrefutave­lmente lúcida, assim como esta: “A fúria do vírus ilustra a loucura da guerra”. Ambas impõem a missão de lutar “como o diabo” para que a solidaried­ade na pandemia ilustre a sanidade da paz.

É hora de pôr o conflito armado em confinamen­to e lutar por nossa vida, diz secretário-geral da ONU

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