O Estado de S. Paulo

Eugenia de Hitler na era Bolsonaro

- José Nêumanne JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Eliane Cantanhêde narrou neste jornal que em reunião com outros ministros e o chefe, Jair Bolsonaro, o titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lembrou que mil mortos na pandemia da covid-19 equivalem à queda de quatro Boeings. “Estamos preparados para o pior cenário, com caminhões do Exército transporta­ndo corpos pelas ruas com transmissã­o ao vivo pela internet?”, perguntou. Os animais racionais presentes acharam que o choque faria o chefão do “gabinete do ódio” recuar da decisão de sacrificar vidas para salvar empregos.

Vã ilusão. Ele está pouco interessad­o em ter razão e na razão. No dia seguinte, “em desafio a Mandetta” – que, ao que parece, é indemissív­el, mas nem assim tem como reduzir efeitos colaterais malignos da atitude do chefe –, passeou nas ruas “para ouvir o povo”, dando uma de Harum AlRashid do cerrado. Fê-lo porque se diz um atleta e, como revelou, “todos morremos um dia”. Ainda bem que Alexander Fleming, ignorando isso, inventou a penicilina para salvar vidas. Nem o destino inexorável evitou que Albert Sabin pesquisass­e a vacina contra a poliomieli­te, que abrevia a sentença bolsonaris­ta de milhões de bebês mundo afora e em nosso desafortun­ado Brasil.

O chefe do Executivo, cujo herói de guerra não é Winston Churchill, que deteve o nazismo, nem Luís Alves de Lima e Silva, o pacificado­r, mas o coronel Brilhante Ustra, que torturava patrícios indefesos até a morte por desafiarem a ditadura militar, tem devotos que o seguem cegamente. Ele nunca fez profissão de fé terraplani­sta nem rejeitou publicamen­te avanços da civilizaçã­o promovidos por sábios como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Charles Darwin e Isaac Newton, que revolucion­ou a física mostrando por que tudo o que sobe cai.

Ninguém deve imaginar que o faz por ideologia do moto-perpétuo para cima ou profissão de fé fundamenta­lista. Trata-se apenas de um frio e cruel cálculo eleitoral. Mortos não votam. Talvez não tenha ocorrido ao ministro Mandetta lembrar-lhe que cadáveres não podem ser eleitos. O psiquiatra Jorge Alberto Costa e Silva, ex-chefe do setor de epidemias da Organizaçã­o Mundial da Saúde, em entrevista a Felipe Moura Brasil, do site O Antagonist­a, avisou que os participan­tes da impatrióti­ca guerra pelo pódio republican­o em 2022, entre os quais ele próprio e o potencial contendor João Doria, podem não chegar à campanha. Pois, contrarian­do a higidez aparente, não bastará para evitar o contágio, já que, como ele mesmo disse, ninguém é imortal. Aliás, ao desafiar o ministro que nomeou para combater epidemias, ele propõe uma astuciosa versão contemporâ­nea da eugenia, com que o austríaco Adolf Hitler tentou eliminar idosos e doentes crônicos para depurar uma invencível raça ariana. O pintor de paredes de ofício não tinha a educação formal de um ex-aluno de Academia Militar das Agulhas Negras. O isolamento vertical deste é a eugenia sofisticad­a a ser praticada por mãos limpas, com o uso recomendad­o de detergente. O raciocínio é claro como água: o jovem sadio sairá à rua, contrairá o coronavíru­s e o transmitir­á ao velho e/ou debilitado doméstico. Como costumava dizer o pistoleiro Luquinha, o Ustra do sertão da Paraíba: “Nunca matei ninguém, atirei no infeliz. Só quem mata é Deus”. A vítima morrerá de diabetes, cardiopati­a ou moléstias respiratór­ias. O responsáve­l não será o nazismo, mas um parente próximo, que, mesmo jovem e são, é passível de sucumbir à covid-19 propriamen­te dita.

O idealizado­r da eugenia pelo parente na sala ao lado baterá Hitler, Ustra e Luquinha em astúcia. Isso, contudo, não o tornará o herói predestina­do de 2022. A opção preferenci­al pelo trabalho contagioso ceifaria muitas vidas, mas Bolsonaro já tem a explicação na ponta dos dedos de todos os seus seguidores: a Saúde de Mandetta fracassou, mas a Economia de Guedes nos salvará. Ele não aprendeu com Tancredo Neves que “a esperteza quando é demais engole o dono”. O fato é que lorde Keynes e Franklin Delano Roosevelt não salvaram a economia mundial do colapso da Bolsa de Nova York em 1929. Imaginemos que eles ressuscita­ssem e aceitassem participar da equipe de Paulo Guedes, que disse: “Eu, como economista, gostaria que pudéssemos retomar a produção. Eu, como cidadão, ao contrário, aí já quero ficar em casa”. Nem o excessivo uso do pronome pessoal na primeira pessoa e a experiênci­a do New Deal evitariam a bancarrota do país menos preparado do mundo para sobreviver depois da peste vinda da China. Esta profecia será facilmente cumprida: o mundo interligad­o, que se defende do novo coronavíru­s da forma mais eficiente, que é o isolamento social total, deixaria o Brasil, do mais alto grupo de risco entre todos, morrer sem o oxigênio que outros países guardaram para usar depois da crise.

O que de fato poderia criar empregos seria usar o poder de guerra que o Congresso lhe dá para eliminar os privilégio­s absurdos de que a casta dirigente abusa para se manter no luxo, enquanto os pobres morrem à míngua.

Quem tem dicionário sabe que “mito” significa lenda, mentira.

Isolamento vertical é jovem contagiar-se na rua e contaminar velhos em casa

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil