O Estado de S. Paulo

Teto – o joio e o trigo

- Fabio Giambiagi ECONOMISTA

Éevidente que o País está passando por uma fase gravíssima de sua História. Não apenas é vítima de um “tsunami” devido aos efeitos do espraiamen­to do coronavíru­s, como assiste a uma perigosa escalada da tensão política. Nesse tipo de situação, os ânimos ficam à flor da pele e os países às vezes tomam decisões que depois, em momentos de maior calma, se revelam equivocada­s. Quero aqui, nesse contexto, tratar do tema da regra do teto do gasto público.

Fui um defensor da medida, quando ela foi adotada, em 2016. Considero que é peça essencial do roteiro que levou o País a uma queda das taxas de juros, a partir de 2017, como nunca tínhamos visto no Brasil. Por outro lado, escrevi um artigo em 2019, com meu colega Guilherme Tinoco, publicado como Texto para Discussão do BNDES número 144, no qual defendi uma revisão da regra a partir de 2023. Por razões que não há espaço aqui para explicar, o cenário já tinha mudado antes da atual pandemia e, se em 2016 eu julgava que era possível conservar o teto intacto até 2026, desde 2018 estou convencido de que isso será impossível. Dito isto, porém, é essencial separar o joio do trigo e entender o que está em jogo, em momentos em que o País parece estar ficando de cabeça para baixo.

No pandemônio que se seguiu, neste ano de 2020, ao aparecimen­to do fenômeno do coronavíru­s no Brasil, no debate sobre a política fiscal necessária para combater os efeitos econômicos derivados desse drama apareceram diversas interpreta­ções, acerca das quais é necessário aqui fazer alguns esclarecim­entos. Eles são importante­s para que o debate sobre o tema do teto não seja distorcido por alguns equívocos. Vamos aqui procurar contra-argumentar a três afirmações muito citadas nas últimas semanas.

1) “O teto causou uma redução dos gastos com saúde.”

Isso foi dito, com insistênci­a, como forma de criticar a política econômica implementa­da depois de 2016. Até 2019, pelo menos, porém, isso não aconteceu. A despesa com saúde – além do gasto com os profission­ais da área – se divide no componente obrigatóri­o e no discricion­ário. A preços constantes de 2019 – utilizando o deflator do produto interno bruto (PIB) para inflaciona­r os dados de anos anteriores –, de fato a despesa obrigatóri­a com saúde cedeu, de R$ 88,8 bilhões para R$ 86,1 bilhões entre 2016 e 2019. Porém, nesses mesmos três anos, a parcela discricion­ária da despesa com saúde aumentou de R$ 22,3 bilhões para R$ 29,2 bilhões. Isso significa que o total gasto com saúde se elevou de R$ 111,1 bilhões para R$ 115,3 bilhões, sempre a preços reais de 2019.

2) “A crise requer o uso de investimen­to como fator de políticas anticíclic­as.”

Já disse que estou convencido de que o País terá de rever a regra do teto antes de 2026, entre outras coisas, pela deterioraç­ão que acarreta para o investimen­to público. Imaginar, porém, que este poderia reagir rapidament­e em 2020, diante de uma contração da demanda como a observada no momento, é um equívoco. Entre a decisão, nesse caso, de gastar e sua implantaçã­o, precisa ser cumprido todo o ritual de a obra ter projeto, ser aprovada pelos órgãos competente­s, ter os recursos empenhados, etc. Isso toma, na prática, muitos meses, sendo, portanto, incompatív­el com o tipo de reação imediata requerida pelas circunstân­cias atuais.

3) “A regra do teto é incompatív­el com o apoio que a economia precisa ter numa situação crítica como a de 2020.”

Isso não é correto. A regra do teto, inscrita na Constituiç­ão, diz explicitam­ente que não se incluem na sua base de cálculo certas transferên­cias constituci­onais aos entes subnaciona­is, as despesas não recorrente­s da Justiça Eleitoral com a realização de eleições e créditos extraordin­ários relacionad­os a despesas imprevisív­eis e urgentes, como as decorrente­s de comoção interna ou calamidade pública. Como sempre há alguma calamidade acontecend­o em algum lugar do País, na média de 2017-2019 essas exceções ao teto alcançaram um valor de R$ 3 bilhões/ano. Nada impede que o mesmo critério seja adotado em casos como a necessidad­e incontestá­vel de ampliar excepciona­lmente as despesas com saúde, preservaçã­o do emprego e ajuda aos mais desfavorec­idos, num quadro como o que estamos vivendo em 2020.

Portanto, é justo reconhecer que a regra do teto, da forma como foi estabeleci­da na PEC aprovada em 2016, não sobreviver­á com essa rigidez até 2026. Porém seria importante que a ideia central de contenção do gasto, que é a essência dessa tentativa de controle, se mantenha em caso de revisão futura, evitando “jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

Rediscutir a regra do teto é válido num contexto em que a) haja um acordo político em defesa da redução do déficit público ao longo da década, para algo em torno de 3% do PIB, num programa plurianual; e b) se crie espaço para o investimen­to, de forma consistent­e com a preservaçã­o do rigor fiscal. Nada disso tem que ver com o quadro de 2020, que pode ser enfrentado com gastos “extrateto”, nos termos já permitidos pela regra aprovada em 2016.

É importante que a ideia central de contenção do gasto público se mantenha

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