O Estado de S. Paulo

Para populistas, vírus é chance de acumular ainda mais poder

Líderes de todo o mundo estão invocando mais poderes e conquistan­do autoridade praticamen­te ditatorial sem resistênci­a

- LONDRES / NYT

Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán pode agora governar por decreto. No Reino Unido, os ministros ganharam poder para deter pessoas e fechar fronteiras. O premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, fechou os tribunais e iniciou uma vigilância invasiva dos cidadãos. O Chile enviou os militares para praças públicas, uma vez ocupadas por manifestan­tes. A Bolívia adiou as eleições.

À medida que a pandemia do novo coronavíru­s se propaga e os cidadãos ansiosos exigem ações contra o vírus, líderes de todo o mundo estão invocando mais poderes e conquistan­do autoridade praticamen­te ditatorial com pouca resistênci­a.

Governos e grupos de proteção de direitos civis concordam que Estados precisam de novos poderes para fechar suas fronteiras, impor quarentena­s e rastrear pessoas infectadas. Mas críticos alegam que alguns estão usando a crise como desculpa para se apropriar de poderes que têm pouco a ver com o surto. “Poderíamos ter uma epidemia de medidas autoritári­as e repressiva­s após a epidemia de saúde”, disse Fionnuala Ni Aolain, relatora especial da ONU de contraterr­orismo e direitos humanos.

À medida que as novas leis ampliam a vigilância do Estado, permitem que governos impeçam indefinida­mente as pessoas de se reunirem e se expressare­m. A pandemia vem redefinind­o normas. Sistemas de vigilância invasivos na Coreia do Sul e Cingapura, que lembram a censura, foram elogiados por diminuir a velocidade das infecções. Governos que inicialmen­te criticaram a China por prender milhões de cidadãos passaram a fazer a mesma coisa.

Em Israel, Netanyahu autorizou a agência de segurança a rastrear cidadãos usando um acervo secreto de dados de celulares desenvolvi­dos para combater o terrorismo. Ao monitorar os movimentos das pessoas, o governo pode punir aqueles que desafiam ordens de isolamento com até 6 meses de prisão. Ao determinar o fechamento dos tribunais do país, Netanyahu conseguiu adiar a audiência em que enfrentari­a acusações de corrupção.

Em algumas partes do mundo, as novas leis reviveram velhos temores da ditadura. O Congresso filipino aprovou uma legislação, na semana passada, que concede poderes de emergência ao presidente, Rodrigo Duterte. “Essa concessão ilimitada de poderes equivale à autocracia”, afirmou o Concerned Lawyers for Civil Liberties, grupo de direitos das Filipinas. Advogados lembram que Duterte já comparou a Constituiç­ão filipina a um “pedaço de papel higiênico”.

Alguns Estados vêm usando a pandemia para reprimir a dissidênci­a. Na Jordânia, depois que uma “lei de defesa” emergencia­l deu mais poderes ao governo, o primeiro-ministro Omar Razzaz disse que agiria com “firmeza” contra qualquer pessoa que espalhasse “rumores e notícias falsas que provoquem pânico”.

O primeiro-ministro da Tailândia, Prayuth Chan-ocha, impôs um toque de recolher e censurou a imprensa. Jornalista­s foram processado­s e intimidado­s por criticar a resposta do governo ao surto.

O abuso também é notado na América Latina. Embora o vírus tenha tirado os manifestan­tes das praças, a declaração chilena de “estado de catástrofe” e a presença dos militares nas ruas silenciara­m a dissidênci­a furiosa dos últimos meses. A pandemia também interrompe­u as eleições na Bolívia, marcadas para maio e transferid­as para o segundo semestre – votação que a atual presidente, Jeanine Áñez, perderia, segundo pesquisas.

Nos EUA, o Departamen­to de Justiça solicitou ao Congresso novos poderes, incluindo um plano para eliminar proteções legais para requerente­s de asilo e deter pessoas indefinida­mente sem julgamento. Depois que republican­os e democratas rejeitaram a proposta, o governo apresentou outra mais comedida.

Grupos de direitos humanos dizem que líderes autoritári­os podem continuar absorvendo mais poder enquanto seus cidadãos estão distraídos. Eles temem que as pessoas não reconheçam os direitos que cederam até que seja tarde demais para recuperá-los.

Algumas contas foram aprovadas tão rapidament­e que deputados e grupos de direitos humanos não tiveram tempo nem sequer de lê-las. “Certos governos têm um conjunto de poderes desejados prontos para usar em caso de emergência ou crise”, disse Fionnuala. “Eles elaboram leis com antecedênc­ia e esperam que a chance apareça.”

“Com o tempo, os decretos de emergência permeiam as estruturas legais e se normalizam”, afirmou Douglas Rutzen, presidente do Internatio­nal Center for Not-for-Profit Law, de Washington. “É fácil construir poderes de emergência. Difícil é desconstru­í-los.”

“É fácil construir poderes de emergência. Difícil é desconstru­í-los”

Douglas Rutzen

PRESIDENTE DO INTERNATIO­NAL CENTER FOR NOT-FOR-PROFIT LAW, DE WASHINGTON

 ?? KING RODRIGUEZ/EFE ?? Duterte. Presidente filipino: autoritari­smo em alta
KING RODRIGUEZ/EFE Duterte. Presidente filipino: autoritari­smo em alta

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil