Para populistas, vírus é chance de acumular ainda mais poder
Líderes de todo o mundo estão invocando mais poderes e conquistando autoridade praticamente ditatorial sem resistência
Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán pode agora governar por decreto. No Reino Unido, os ministros ganharam poder para deter pessoas e fechar fronteiras. O premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, fechou os tribunais e iniciou uma vigilância invasiva dos cidadãos. O Chile enviou os militares para praças públicas, uma vez ocupadas por manifestantes. A Bolívia adiou as eleições.
À medida que a pandemia do novo coronavírus se propaga e os cidadãos ansiosos exigem ações contra o vírus, líderes de todo o mundo estão invocando mais poderes e conquistando autoridade praticamente ditatorial com pouca resistência.
Governos e grupos de proteção de direitos civis concordam que Estados precisam de novos poderes para fechar suas fronteiras, impor quarentenas e rastrear pessoas infectadas. Mas críticos alegam que alguns estão usando a crise como desculpa para se apropriar de poderes que têm pouco a ver com o surto. “Poderíamos ter uma epidemia de medidas autoritárias e repressivas após a epidemia de saúde”, disse Fionnuala Ni Aolain, relatora especial da ONU de contraterrorismo e direitos humanos.
À medida que as novas leis ampliam a vigilância do Estado, permitem que governos impeçam indefinidamente as pessoas de se reunirem e se expressarem. A pandemia vem redefinindo normas. Sistemas de vigilância invasivos na Coreia do Sul e Cingapura, que lembram a censura, foram elogiados por diminuir a velocidade das infecções. Governos que inicialmente criticaram a China por prender milhões de cidadãos passaram a fazer a mesma coisa.
Em Israel, Netanyahu autorizou a agência de segurança a rastrear cidadãos usando um acervo secreto de dados de celulares desenvolvidos para combater o terrorismo. Ao monitorar os movimentos das pessoas, o governo pode punir aqueles que desafiam ordens de isolamento com até 6 meses de prisão. Ao determinar o fechamento dos tribunais do país, Netanyahu conseguiu adiar a audiência em que enfrentaria acusações de corrupção.
Em algumas partes do mundo, as novas leis reviveram velhos temores da ditadura. O Congresso filipino aprovou uma legislação, na semana passada, que concede poderes de emergência ao presidente, Rodrigo Duterte. “Essa concessão ilimitada de poderes equivale à autocracia”, afirmou o Concerned Lawyers for Civil Liberties, grupo de direitos das Filipinas. Advogados lembram que Duterte já comparou a Constituição filipina a um “pedaço de papel higiênico”.
Alguns Estados vêm usando a pandemia para reprimir a dissidência. Na Jordânia, depois que uma “lei de defesa” emergencial deu mais poderes ao governo, o primeiro-ministro Omar Razzaz disse que agiria com “firmeza” contra qualquer pessoa que espalhasse “rumores e notícias falsas que provoquem pânico”.
O primeiro-ministro da Tailândia, Prayuth Chan-ocha, impôs um toque de recolher e censurou a imprensa. Jornalistas foram processados e intimidados por criticar a resposta do governo ao surto.
O abuso também é notado na América Latina. Embora o vírus tenha tirado os manifestantes das praças, a declaração chilena de “estado de catástrofe” e a presença dos militares nas ruas silenciaram a dissidência furiosa dos últimos meses. A pandemia também interrompeu as eleições na Bolívia, marcadas para maio e transferidas para o segundo semestre – votação que a atual presidente, Jeanine Áñez, perderia, segundo pesquisas.
Nos EUA, o Departamento de Justiça solicitou ao Congresso novos poderes, incluindo um plano para eliminar proteções legais para requerentes de asilo e deter pessoas indefinidamente sem julgamento. Depois que republicanos e democratas rejeitaram a proposta, o governo apresentou outra mais comedida.
Grupos de direitos humanos dizem que líderes autoritários podem continuar absorvendo mais poder enquanto seus cidadãos estão distraídos. Eles temem que as pessoas não reconheçam os direitos que cederam até que seja tarde demais para recuperá-los.
Algumas contas foram aprovadas tão rapidamente que deputados e grupos de direitos humanos não tiveram tempo nem sequer de lê-las. “Certos governos têm um conjunto de poderes desejados prontos para usar em caso de emergência ou crise”, disse Fionnuala. “Eles elaboram leis com antecedência e esperam que a chance apareça.”
“Com o tempo, os decretos de emergência permeiam as estruturas legais e se normalizam”, afirmou Douglas Rutzen, presidente do International Center for Not-for-Profit Law, de Washington. “É fácil construir poderes de emergência. Difícil é desconstruí-los.”
“É fácil construir poderes de emergência. Difícil é desconstruí-los”
Douglas Rutzen
PRESIDENTE DO INTERNATIONAL CENTER FOR NOT-FOR-PROFIT LAW, DE WASHINGTON