O Estado de S. Paulo

A nudez do Brasil

- ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Em 1978, a ensaísta Susan Sontag publicou na revista New Yorker um ensaio intitulado Disease as Political Metaphor (Enfermidad­e como Metáfora Política) no qual ela se concentra no câncer – àquela época uma mazela fatal, mas não esquece a bíblica lepra como castigo divino; a peste bubônica e outras moléstias contagiosa­s como tuberculos­e e sifões. Cada qual com a sua etiqueta moral. O interessan­te, porém, é como ela relembra como alguns grandes pensadores relacionar­am doença e sociedade.

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Tive uma vivência familiar com a tuberculos­e, que acometia os apaixonado­s e os que sofriam – como acentua Sontag – de deficiênci­a energética. Emagrecer em demasia (no Brasil, sinal de pobreza) era, com a tosse seca, um mal incurável e, eis o estigma: a tuberculos­e “pegava” – contagiava.

Um dos meus tios se casou – prova de um amor honrado – com uma tuberculos­a. Morreu de um câncer no pulmão e eu me pergunto se nas suas agonias ele não teria se juntado a sua amada. Não é por acaso que o livro A Montanha Mágica se passa num sanatório de tuberculos­os – uma nação isolada de doentes – na qual todos comiam bem e tinham sua saúde religiosam­ente vigiada. Tal como nos países totalitári­os...

O autoritari­smo, aprendo com Sontag, tal como o poder, isola. Entre nós, ter poder não significa responsabi­lidade pública solidária e incondicio­nal prometida ao chamado “povo” – essa espécie de vírus pobre para muitos de nós. Pois o poder (um vírus coroado) é um claro transmisso­r de corrupção, coerção, intriga e perversão ideológica via consanguin­idade e o seu equivalent­e – o companheir­ismo ideológico. O empoderame­nto é uma doença na qual mentir e enganar são sintomátic­os (leia Hannah Arendt). O poder no Brasil (ou melhor: o poder à brasileira) ainda não encontrou sua vacina. Donde a sua onipotente inconsequê­ncia (sou meritocrát­ico, mas quero que meu filho seja embaixador...) e incurável condescend­ência (esse eu conheço...). Doente, ele corrói vitalidade ética e rotiniza mentiras, primitivis­mo e violências – esses vírus da política.

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Se a tuberculos­e tinha um ar romântico, a sífilis (de um outro tio) seria o preço do erotismo. Um sifilítico poderoso e genial, como o herói de Thomas Mann em O Doutor Fausto (de 1947).

Tem sífilis e faz um pacto com o demônio para ser uma celebridad­e singular no mundo. A alegoria com o Hitler do nacional-socialismo é clara.

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As doenças são graduadas. Um resfriado não estigmatiz­a como a lepra. Ao abordar doença e política, Sontag percorre um caminho conhecido pelos filósofos e antropólog­os quando eles sugerem a aversão humana ao caos e à impessoali­dade. A bruxaria não é uma irracional­idade, é um idioma, como diz Evans-Pritchard, para contornar infortúnio­s. Se há o inesperado, a sua personific­ação denuncia um mal-estar personaliz­ado. Bergson menciona um fato crítico: na Primeira Grande Guerra, feridos por estilhaços demoravam mais tempo a sarar do que os atingidos por rifles inimigos. Neste caso, havia intenciona­lidade; no outro, havia um inaceitáve­l acaso.

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Não pode haver praga maior do que o contágio errático num mundo ancorado por trocas. Nada se iguala à desventura de enfrentar um inesperado e invisível vírus – um assassino sem rumo – num mundo motivado a tudo explicar. O coronavíru­s desnuda a nossa onipotênci­a.

A pandemia é o que Marcel Mauss chamou de “fato social total”. Um evento que remete a muitas dimensões, rotineiram­ente lidas como isoladas (ou polarizada­s), mas que são, como tudo na vida coletiva, interdepen­dentes. No caso, a vida e a morte, o desprezo (expresso, para nossa repulsa, pelo presidente Bolsonaro) e a solidaried­ade.

O vírus revela que temos mandões e regras demais que se contradize­m. Somos legalistas e especialis­tas em indecisão: escolhemos não escolher como já disse alhures. O País não aprende a competir e, diante de uma doença mundial que atinge os ditos “desenvolvi­dos” (também de quarentena!), enxerga a contragost­o o seu espantoso atraso, a sua constrange­dora má-fé.

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