IDOSOS DIZEM NÃO AO CONFINAMENTO
Para entender a dificuldade de adesão, especialistas falam sobre o que pode levar a terceira idade a essa atitude
Por que a sociedade trata o idoso como criança? Após, pelo menos, 60 anos de experiência de vida, passando por inúmeras situações, desilusões, conquistas e aprendizados, por que seus sentimentos não são validados? A maneira pejorativa como a sociedade sempre encarou a velhice impede que se perceba que existe uma multiplicidade de idosos.
“Nós nos deparamos com coletivos muito desiguais: idosos assistidos dignamente e outros totalmente desamparados. Mas o que existe em comum nesses dois universos é a maneira pela qual a sociedade percebe essa parcela imensa da população: pessoas sem potência de vida. Basta observarmos como os velhos são, infelizmente, tratados pelos mais jovens: no diminutivo, como se crianças fossem”, avalia a mestre em Gerontologia Social pela PUC de São Paulo Maria Antonia Demasi.
A doutoranda pelo Departamento de Ciências Sociais na mesma instituição vai além: “A questão é que, aqueles que nominamos ‘velhinhos’, pessoas em diminutivo, são homens e mulheres com uma construção de vida tal que os fizeram chegar até aqui, inteiros, mais ou menos vulneráveis, frágeis, mais ou menos saudáveis, vitais, mais ou menos demenciados frente às intensidades do existir”, afirma.
Além de multiplicidade de situações sociais, os idosos, que compõem o grupo de risco para coronavírus, foram agrupados pelos critérios médicos de funcionamento fisiológico humano: tipo de sistema imunológico, de capacidade pulmonar e cardíaca, por exemplo.
“Há idosos completamente ativos do ponto de vista profissional, físico e social em um extremo, e, no outro, idosos totalmente dependentes física e mentalmente”, ressalta a neuropsicóloga Gisele Calia.
Para entender a dificuldade de adesão de todos à quarentena, é necessário encontrar fatores em comum que possam estar presentes para que grande parte desse grupo tenha apresentado resistência. E este é o maior desafio.
Para os pais que já passaram dos 60 anos, é muito difícil passar de uma situação em que têm autonomia para uma de dependência, como se fossem “filhos dos filhos”, na análise do psicanalista Cláudio Castelo Filho. “Como no fim da vida, após tantas privações e sacrifícios, não vou poder fazer como melhor me aprouver? Como alguém se atreve a essa altura da vida a me dizer o que posso e o que não posso fazer?”, diz.
Ele acrescenta que alguns indivíduos vivem em negação: “Os idosos costumam ficar em situações de maior solidão e isolamento social já naturalmente, visto que se aposentam, estão longe das relações de trabalho, das amizades, e muitas vezes mal veem os filhos e parentes. Um enclausuramento forçado devido à doença que se espalha pode parecer intolerável e a frustração pela falta de contato humano pode tornar-se insuportável. Parte-se para a negação da realidade e opta-se pelo risco. Vi um depoimento de uma senhora francesa sobre o que se passava em Paris, antes do decreto de confinamento radical, e ela dizia que a depressão de ficar em casa era pior do que o vírus”.
A neuropsicóloga Gisele Calia explica que há uma espécie de “configuração cerebral” diferente dessa geração que passou dos 60 anos: “Nascidos muito antes da era tecnológica, seus cérebros foram ‘formatados’ pela e para a vida física, e não pela virtual. Acostumaram-se a se motivar por estímulos reais, produzidos pelo contato físico com a natureza, com os outros seres humanos, com os cheiros e ruídos vindos do exterior, com o vento no rosto, com o aperto de mão, com o olho no olho e com a locomoção a pé, por exemplo. Obrigá-los a ficar em casa é tão difícil quanto pedir que um jovem passe um dia sem acessar qualquer mecanismo virtual”.
Um dos aspectos apontados por Gisele Calia é a própria percepção dos idosos sobre si. “Se a autoimagem do idoso de antigamente era a do ‘senhorzinho de bengala’, hoje em dia, muitos se sentem e se veem como jovens, atletas, e não como integrando um ‘grupo de risco’. Se me sinto e me percebo como tão saudável, como posso me identificar como integrante do grupo que será o mais atingido por uma doença? Assim, posso sair na rua tal qual meu filho ou meu neto, pois sou tão ou mais saudável do que eles”, diz.
Outra situação que vale destacar é que declínios cognitivos leves podem estar presentes nos idosos mais saudáveis fisicamente, por anos, sem afetar drasticamente a vida autônoma, independente, e sem mostrar sinais óbvios mesmo para os parentes mais próximos. “Tais declínios podem ser manifestados em forma de teimosia, dificuldade para aceitar opiniões diferentes das suas, resistência exacerbada a mudanças de rotinas e planos, diminuição da capacidade de planejamento e de tomada de decisões. Em uma situação de isolamento social imposta, tais declínios podem afetar a capacidade de aceitar o que lhe é pedido e de se organizar para passar um tempo em quarentena”, enfatiza a neuropsicóloga.
“Um enclausuramento forçado e a frustração pela solidão podem tornar-se insuportáveis” Cláudio Castelo Filho PSICANALISTA
“Se a autoimagem do idoso de antigamente era a do ‘senhorzinho de bengala’, agora muitos se veem como jovens, atletas, e não como integrando um ‘grupo de risco’’’ Gisele Calia NEUROPSICÓLOGA