WILLIAM SHAKESPEARE TEMPOS DE PESTES
A vida do dramaturgo inglês foi entrecortada por pragas e é em meio delas que ele produziu suas grandes obras-primas, como ‘Rei Lear’
O Twitter tem nos provocado: quando ele estava em quarentena contra a praga, William Shakespeare escreveu Rei Lear.
A vida de Shakespeare foi marcada por pragas. Apenas algumas semanas após seu batismo na Igreja da Santíssima Trindade, em Stratford-upon-Avon, em 1564, o registro dizia: "Hic incepit pestis" (Aqui começa a praga). As taxas de mortalidade na cidade foram quatro vezes superiores às do ano anterior, livre de peste. Shakespeare, o filho do luveiro da cidade, sobreviveu a este e a muitos outros surtos. Grande parte de seu trabalho foi composto, se não em confinamento, à sombra de uma doença altamente infecciosa sem cura conhecida.
Enquanto os teatros foram fechados devido a uma epidemia nos anos de 1592 e 1593, o jovem dramaturgo produziu seus poemas narrativos de enorme sucesso Vênus e Adônis e O estupro de Lucrécia.
Nos anos de 1603 e 1604, quando a peste impediu as celebrações da coroação do novo rei, James I, e um em cada cinco londrinos sucumbiu à doença, Shakespeare escrevia um estudo sobre corrupção cívica, “Medida por medida”.
No surto de peste do verão de 1606, Shakespeare podia muito bem estar trabalhando em Rei Lear, uma vez que a primeira apresentação da tragédia foi no Palácio de Whitehall, a principal residência londrina dos monarcas ingleses Tudor e Stuart, "na noite do dia de santo Estêvão durante o recesso” daquele mesmo ano.
O impacto da doença na peça, no entanto, é oblíquo. Há referências a pragas que perderam sua especificidade ao longo do tempo, mas que devem ter causado um calafrio. Lear amaldiçoa sua filha Regan e seu marido, Cornwall, com “vingança, praga, morte, confusão” e a repreende como “uma úlcera pestosa, um carbúnculo podre e tumefeito no meu sangue corrupto”.
"Úlcera pestosa" refere-se às glândulas linfáticas inflamadas que eram um sintoma tão temido da doença - não é algo que qualquer pai ou mãe deseje ao filho. Talvez a violência particular da peça na geração mais nova alegorize a da própria praga: a doença era mais comum entre os de 20 e 30 anos.
Shakespeare parece ter sido capaz de excluir em grande parte seu contexto imediato. A praga está em todo lugar e em nenhum lugar em seu trabalho. Na linguagem de Rei Lear e outras peças, é onipresente – mas, de outro modo, está quase totalmente ausente.
Homens e mulheres, com certeza, morrem de várias maneiras de acordo com sua imaginação. Em Otelo, Desdêmona é sufocada em sua cama. Em Tito Andrônico, os estupradores Quíron e Demétrio têm as gargantas cortadas e são assados como se fossem ingredientes de uma torta. João de Gaunt morre de velhice agravada pela ausência de seu filho exilado em Ricardo II. Em Hamlet, Ofélia se afoga.
Ninguém nas peças de Shakespeare morre de peste. Romeu e Julieta, que morrem porque a carta do frade é retida por medidas de quarentena no norte da Itália, são os personagens que têm maior proximidade com a praga.
Assim como Shakespeare nunca escreveu uma peça na Londres contemporânea, ele também não se dirigiu diretamente à causa mais importante de morte súbita em sua sociedade. O realismo documental não era o estilo de Shakespeare.
Isso é tema para outros formatos e autores literários – em particular os contemporâneos de Shakespeare, o dramaturgo e panfletário Thomas Dekker, que escreveu uma série de panfletos em prosa sardônica e febrilmente inventivos sobre a praga, ou o poeta e dramaturgo Ben Jonson, cuja peça O Alquimista captura a energia maníaca de uma casa durante uma praga, que foi deixada nas mãos dos servos enquanto o dono está ausente – nos quais devemos procurar encontrar os efeitos diretos da praga na sociedade do século 17.
Shakespeare faz algo diferente. René Girard, o crítico francês, escreveu em um famoso ensaio que “o caráter distintivo da praga é que, em última análise, destrói todas as formas de distinção”. As sepulturas em massa para as vítimas da peste foram
A PRAGA ESTÁ EM TODO LUGAR E EM NENHUM LUGAR EM SEU TRABALHO
PARADOXO DA TRAGÉDIA É QUE ELA RESSALTA A IMPORTÂNCIA DO INDIVÍDUO
um símbolo de como a doença apagou as diferenças sociais, de gênero e pessoais.
Dekker observou que, na cova comunal, "Servo e mestre, sujo e justo / Vestem o mesmo uniforme e companheiros são." A peste era indiferente aos limites estabelecidos pela sociedade e seu apetite era voraz.
As imagens comuns na cultura medieval tardia – conhecida como “danse macabre”, ou dança da morte - retratavam a morte, personificada como um esqueleto, movendo-se obscenamente entre os vivos. Ele está com eles, invisível, no quarto, na mesa, na rua, nos escritórios.
Embora aterrorizante, a descrição também domestica a morte: ela se preocupa com a nossa particularidade o suficiente para nos perseguir à medida que prosseguimos em nossos negócios diários. As tragédias de Shakespeare compartilham essa intimidade. A resposta delas à praga não é negar a mortalidade, mas enfatizar a diferença única e inalterável das pessoas.
O paradoxo da tragédia é que ela ressalta a importância e a distinção do indivíduo, mesmo quando o move inexoravelmente em direção ao seu fim. Não desafia a morte, mas atribui-lhe significado e especificidade.
Tramas elaboradas, motivos, interações e obscuridade concentram nossa atenção nos seres humanos. Ninguém nas peças de Shakespeare morre rápida e obscuramente, jogado em uma cova comunitária. Em vez disso, as últimas palavras são ouvidas, os epitáfios são escolhidos com atenção e corpos são enterrados com respeito.
Shakespeare não está interessado nas estatísticas – o que na época era chamado de contagem de mortalidade. Suas ficções reimaginam a macronarrativa da epidemia como a micronarrativa da tragédia, estabelecendo a singularidade humana contra os estragos obliterantes da doença. Seu trabalho é um profilático cultural contra a compreensão de doenças apenas em termos quantitativos, uma vacina narrativa.
Rei Lear também faz isso: deliberadamente põe de lados os números e os reduz para se concentrar nos indivíduos. O momento em que Lear percebe, durante a tempestade, que ele ignorou a situação difícil de seu povo, refere-se menos a descoberta de uma antiga nobreza britânica favorecida e mais a percepção de que uma praga indiscriminada deve nos lembrar de nossa humanidade compartilhada. A própria miséria do rei o faz ver, pela primeira vez, que a vida de outras pessoas também tem significado.