O Estado de S. Paulo

Rita e Gilda

- ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS Leandro Karnal

Rita Hayworth nasceu no Brooklyn (NY), em 1918. Seu nome de batismo denunciava a ascendênci­a latina: Margarita Carmen Cansino. Mulher linda, treinada pelo pai em dança, começou cedo a carreira no cinema. Em 1946, aos 28 anos, fez o papel que a imortaliza­ria como uma deusa sexy, símbolo absoluto do feminino de sensualida­de devastador­a. No filme, quando ela tira sua longa luva, causa mais furor do que os strip-teases completos. Gilda fumando é uma cena única, em época de sedução associada ao cigarro e à ousadia.

Há uma frase associada à atriz Rita Hayworth após o sucesso de Gilda. Ela reclamava que os homens se apaixonava­m por Gilda e acordavam ao lado de Rita. A atriz casouse cinco vezes. As uniões foram, quase todas, muito infelizes. Seria isso? Bem, ela teve um casamento ruim aos 18 anos, bem antes do sucesso do filme. Talvez o mito Gilda não possa levar toda a conta da dor de Rita. Porém, com certeza, o abismo entre a personagem e a mulher real é algo que poderia ser interessan­te para pensar Marilyn Monroe, Maria Callas, Elizabeth Taylor e a própria Rita.

Recebo muitas celebridad­es na minha casa. Noto, por vezes, que as pessoas menos conhecidas ficam um pouco fascinadas e incomodada­s ao mesmo tempo ao lado delas. Talvez, imaginem que aquela atriz belíssima viva sendo linda e fascinante em todos os momentos. Diante do intelectua­l midiático surge a vontade de manifestar algo inteligent­e sempre. Ao conversare­m com um músico conhecido, muitos imaginam que o ouvido seja o único campo de interesse do convidado e ficam trazendo tudo o que conhecem do mundo das notas para a conversa. Poucas pessoas conseguem entender que a atriz é também mãe, que faz compras, que fica gripada, que tem inseguranç­a em algum campo e que, acima de tudo, naquele instante festivo, provavelme­nte não deseje fazer o papel de diva. Rita quer ser Rita e não Gilda, e, mais incrível, existe a hipótese de ela desejar uma noite como Margarita, seu eu anterior a Gilda e a Rita.

O mal é universal: personagem e ser humano concreto, rosto e máscara, cena e eu interior. Amigos médicos reclamam dos hipocondrí­acos de toda festa que querem uma endoscopia ali, com o copo de gim-tônica na mão. Pediatras sofrem mais do que a média. Enunciado o nome reumatolog­ista e o grupo elenca, em anamneses intermináv­eis, todas as suas dores ou as de familiares. Infectolog­istas devem preparar uma breve preleção sobre coronavíru­s entre o caldo e a carne principal. Penso em uma hipótese: apenas proctologi­stas ou especialis­tas em disfunção erétil estejam isentos do debate público em festas. Claro, é uma hipótese, porque a vontade de atenção está um pouco fora de controle hoje.

Vou ampliar o pensamento. Eu contemplo aquele político desagradáv­el. Examino sua fala em público. Noto contrações do lábio, pequenos atos nervosos, mãos inquietas, deslizes gramaticai­s e um olhar incomodado com a situação da entrevista. Imagino Gilda atuando, sem a beleza ou o talento de Rita. Analiso a personagem na ribalta do poder e suponho o pai de família, o amigo, a pessoa fora daquele ambiente. Não é um gesto de compaixão no sentido clássico, está mais para tentar entender algo mais complexo do que aquilo que aparece. Na verdade, sou fascinado pelas máscaras para entender o que ocultam. Funciona como a burca. Estou na rua de um lugar no exterior (pode ser Londres ou Cairo) e passa ao meu lado uma mulher de burca completa. Nada denuncia quem está sob os panos escuros. Porém, ao passar do lado dela, um perfume intenso fica no ar. A sinestesia misteriosa faz supor como será aquela pessoa que eu não vejo, apenas sinto. Tenho a sensação de que a maioria dos políticos ostenta a burca para falar. O cargo, a timidez, a situação ou as más intenções jogam um pano pesado sobre ele. Sob a roupa ritual, um outro perfume (ou fedor) insinua-se. Todos julgam o que podem ver, dizia Maquiavel no célebre capítulo 18 do Príncipe, poucos são capazes de perceber quem a pessoa de fato é. E quando Gilda tira a maquiagem, quando despe as burcas de Hollywood, vira Rita. Etapa seguinte: quando Rita relaxa e não se sente observada, ela permite que a frágil Margarita tire a segunda máscara. A filha de espanhol com sangue cigano não precisa fumar como Gilda e nem precisa ter o cabelo de Rita Hayworth. Todas as burcas podem ser retiradas. O que veríamos se todos os políticos pudessem ser eles mesmos? Seria, sob o horror aparente de Quasímodo, um espírito doce? Ou, pelo contrário, Dorian Gray mostraria o rosto escondido no sótão?

O mês de abril começa com o dia da mentira. O filósofo Epicteto dizia que, se ouvir alguém falar mal de você, deveria existir alegria, porque as pessoas só saberiam aquela maldade para lançar na sua cara. Imagine se soubessem de tudo? Imaginemos todos, políticos e médicos, jornalista­s e esposas, funcionári­os e maridos, eu e você, despidos de todas as máscaras. Quem se deitaria com qualquer Gilda se soubesse de tudo? É preciso ter muita esperança e... não ter tanto conhecimen­to sobre os outros.

O abismo entre a personagem e a mulher real poderia ser usado para pensar Marilyn, Callas, Liz

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