O Estado de S. Paulo

Cheque em branco

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

OTesouro não tem recursos infinitos. Por estar em branco, o cheque que a sociedade acaba de conferir ao Executivo para lidar com a crise deve ser usado com muita responsabi­lidade.

Não resta a menor dúvida de que, por mais robustas que sejam, as medidas adotadas pela maioria dos governos do mundo para mitigar os efeitos da epidemia de covid-19 sobre a economia não serão suficiente­s para evitar um desastre de proporções ainda desconheci­das. Assim, o aumento exponencia­l de gastos públicos tornouse quase uma obrigação, sobretudo porque, além de reforçar o sistema de saúde, é preciso proteger os empregos e a renda da parcela da população que vive na informalid­ade e vê a fome bater à porta.

Num cenário como esse, é evidente que não se pode falar, ao menos neste momento, em contenção fiscal, razão pela qual é uma boa notícia a aprovação da Proposta de Emenda Constituci­onal (PEC) 10/20, que criou o chamado “orçamento de guerra” – que tratará especifica­mente das despesas decorrente­s do enfrentame­nto da epidemia, separado do Orçamento da União.

O texto passou na Câmara com votações expressiva­s (505 votos a 2 no primeiro turno e 423 a 1 no segundo) e está para ser apreciado a qualquer momento no Senado. Tal apoio a um projeto gestado pela própria Câmara é claro indicativo de que não há polarizaçã­o política que resista ao imperativo de salvar vidas e proporcion­ar ao setor produtivo condições de sobreviver em meio à tormenta já em pleno curso.

A PEC do “orçamento de guerra” dá liberdade praticamen­te irrestrita ao Executivo, representa­do por um Comitê de Gestão de Crise, que será dirigido pelo presidente Jair Bolsonaro, para administra­r os recursos destinados ao enfrentame­nto da epidemia. Até mesmo a regra de ouro – que impede o governo de emitir títulos para pagar gastos correntes – estará suspensa durante a vigência do estado de calamidade. O Congresso, contudo, se reservou o direito de sustar as decisões do comitê “em caso de irregulari­dade ou de extrapolaç­ão dos limites” estabeleci­dos na PEC. E fez bem. A calamidade não pode ser pretexto para que se criem despesas permanente­s, estranhas ao estritamen­te necessário para o esforço do combate à epidemia.

Não é um risco desprezíve­l, a julgar pelo histórico de irresponsa­bilidade do poder público com o dinheiro do contribuin­te. Basta ver o que fez o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, na sexta-feira passada, ao determinar que a União pague a Estados e municípios o complement­o das verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvi­mento do Ensino Fundamenta­l e de Valorizaçã­o do Magistério (Fundef). Graças a uma interpreta­ção criativa da lei que criou o fundo, que vigorou de 1998 a 2006, Estados com baixa receita e menos alunos julgavam-se no direito de receber o mesmo valor destinado aos Estados com muito mais alunos. A decisão do ministro Dias Toffoli representa uma despesa adicional de R$ 90 bilhões para os cofres da União, já bastante comprometi­dos pela necessidad­e urgente de socorrer cidadãos e empresas em meio à epidemia de covid-19. É a criação de esqueletos fiscais dessa natureza que fragiliza as contas nacionais mesmo que não houvesse o novo coronavíru­s a nos atormentar.

Assim, não se pode permitir que as boas intenções – seja a melhoria da educação, seja a luta contra os efeitos da epidemia de covid-19 – sirvam como subterfúgi­o para favorecer grupos de interesse em detrimento do resto do País, a quem restará pagar a conta do colapso fiscal. “Tem de separar setores com problemas emergencia­is do oportunism­o”, disse ao Estado a economista Zeina Latif, que defendeu a manutenção do teto de gastos: “Tenho medo do precedente que se abre ao suspendê-lo”.

O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, foi claro ao dizer que “não há por que continuar (no futuro) com políticas que só se justificam em um contexto de calamidade”, mas o receio de que isso venha a acontecer é mais que justificad­o. O Tesouro Nacional – leia-se, os contribuin­tes – não tem recursos infinitos, e tudo o que se fizer agora terá consequênc­ias graves no futuro. Justamente por estar em branco, o cheque que a sociedade acaba de conferir ao Executivo para lidar com a crise deve ser usado com muito mais parcimônia e responsabi­lidade.

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