O Estado de S. Paulo

A paralisia do Estado segregado da Nação

- Fernão Lara Mesquita JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Émelancóli­ca essa novela da disponibil­ização do socorro financeiro à economia paralisada pelo coronavíru­s e da exploração política da “culpa” pela demora em consegui-la.

Como de hábito, os funcionali­smos “de direita” e “de esquerda” puseram-se fora do “Orçamento de Guerra”, o que confirma e aprofunda o nosso apartheid. Todas as medidas do Estado para com o Estado para coibir “malfeitos” ou incentivar comportame­ntos desejados estão fadadas a transforma­r-se em ações entre amigos, seja para não serem aplicadas aos funcionári­os culpados, seja para serem aplicadas a todos independen­temente de mereciment­o.

O mundo que funciona é o que não cuida de legislar desenfread­amente para cercar comportame­ntos possíveis, atravancan­do a vida de todo mundo, mas premia ou pune inexoravel­mente, por iniciativa popular, os comportame­ntos de fato havidos, pois, sendo o povo a vítima dos maus ou o beneficiár­io dos bons comportame­ntos dos agentes estatais, é ele a única entidade em condições de julga-los com legitimida­de. Mas o Brasil não aprende com os fatos e a tudo responde com mais Estado e menos cidadania.

Na semana passada atribuí à China a invenção do método e errei. Foi da Coreia do Sul a ideia de aplicar o aparato de espionagem que as gigantes globais de animação de redes montaram para roubar e vender informaçõe­s sobre cada um de nós a quem quiser pagar por elas, dos comerciant­es aos políticos, passando pelos assassinos profission­ais, no combate ao coronavíru­s.

A má vizinhança tornou-os atentos e a epidemia de gripe com síndrome respiratór­ia grave de 2015 (Sars), prima desta, levou-os à revisão e consolidaç­ão de um conjunto de leis que define responsabi­lidades do governo federal, dos governos locais, dos médicos e dos cidadãos para desimpedir ações voltadas para a prevenção, notificaçã­o, investigaç­ão, compensaçã­o e mobilizaçã­o de recursos de combate à epidemia.

A Coreia fez, em resumo, tudo o que o resto do mundo não fez, especialme­nte evitar depositar nas mãos da China a segurança da sua saúde pública, deixando para importar de lá tudo quanto é necessário para garanti-la, como fizeram todos quantos agora ardem no fogo da pandemia. Graças a isso, aplica hoje 5.200 testes por milhão de habitantes, enquanto os Estados Unidos ainda não chegaram a 100, e tem em estoque os respirador­es, testes e equipament­os de proteção (EPIs) essenciais à emergência.

Criou, então, um “aplicativo de autodiagnó­stico”, que cruza as respostas a um questionár­io com os resultados dessas medições e o log retroativo de deslocamen­tos físicos nos últimos 14 dias de cada cidadão, via celular, para atribuir-lhe uma classifica­ção – vermelho, amarelo ou verde – que define seus direitos e deveres quanto à mobilidade ou graus de isolamento. Agora o celular é usado e exigido como um passaporte, o que permitiu ao país continuar funcionand­o enquanto combate a epidemia, com segurança e eficiência. É esse o esquema que vem sendo imitado por todo mundo que ainda pode fazê-lo, como Israel, Alemanha e até a própria China.

Quarentena burra, portanto, fica mais claro a cada minuto, é para quem não tem mais nada, nem testes, nem EPI, nem organizaçã­o e, portanto, nenhuma noção segura do que está acontecend­o. É o “remédio” que restou aos políticos relapsos, que não fizeram a lição de casa para não parecerem o que são. O único recurso ao alcance de muita gente que já foi boa como Estados

Unidos e grande parte da Europa, especialme­nte a latina, por razões que incluem dosagens variáveis de incúria, de dolo e até de cinismo.

Todo mundo, entretanto, já admite pelo menos onde foi que errou e corre, Estados e cidadãos juntos, para construir a ponte que permite sair da quarentena burra – que, posto que a epidemia só cessa quando a maioria contrai o vírus e fica imunizada, serve, no máximo, para desconcent­rar o número de mortes – e evoluir para a quarentena inteligent­e, que evita a hecatombe econômica.

O ministro Mandetta já mencionou que tem uma equipe completa correndo atrás da nossa versão do algoritmo coreano. Só que o caminho do Brasil está travado pela solidez mineral da burrice dos “soldados da fé”, cujo objetivo não é buscar a verdade, mas apenas “eliminar o oponente”. Estes, à direita e à esquerda, tanto quanto os que amplificam seus coices e rasteiras na mídia, bastam-se uns aos outros no seu ódio mútuo. Os pró-quarentena excluem tudo menos a quarentena e os contra-quarentena admitem tudo menos a quarentena, morra quem morrer, o que proporcion­a que a privilegia­tura que come o dinheiro que nos falta permaneça gostosamen­te na sombra.

É debaixo desse barulho que a gente de boa-fé se debate trágica e inutilment­e no atoleiro dos milhões de leis e regulament­os insanos que dão pretexto à colonizaçã­o do Estado pela legião de fiscais, fiscais dos fiscais e “tribunais temáticos”, a rainha das “jabuticaba­s”, que mantém o País Real “rachadinho” e a serviço deles. Erguida para blindar o Estado contra a interferên­cia do povo, a muralha regulatóri­a chegou à perfeição: pôs fora da lei as ações do Estado a favor da sociedade.

A muralha regulatóri­a chegou à perfeição: pôs fora da lei as ações a favor da sociedade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil