O Estado de S. Paulo

‘É como se o médico estivesse muito perto de um reator nuclear’

Anestesist­a conta como é arriscado entubar paciente com covid-19: ‘Basta uma tosse para o quarto ficar cheio de vírus’

- Eli Saslow THE WASHINGTON POST / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Épossível que eu seja a última pessoa que alguns desses pacientes verão ou a última voz que ouvirão. Esta é a realidade desse vírus. Eu me obrigo a pensar nisso por alguns segundos cada vez que entro na UTI para entubar uma pessoa. É nisso que consiste o meu trabalho agora. Estou trabalhand­o 14 horas por noite, seis noites por semana. Quando os pacientes não conseguem oxigênio suficiente, o médico introduz um tubo em suas vias aéreas para poder colocar um respirador. Com isso, prolonga o tempo para o seu organismo combater o vírus.

Provavelme­nte, é o procedimen­to mais perigoso que um profission­al de saúde pode fazer em termos de exposição pessoal. Eu preciso ficar a poucos centímetro­s do rosto do paciente. Eu me curvo, para olhar na sua boca, coloco meus dedos nas gengivas, para abrir totalmente a via aérea. Basta uma tosse para o quarto ficar cheio de vírus.

Por isso, existe a possibilid­ade de eu adoecer. Eu tenho de lidar com minha situação pessoal em relação a esse vírus, mas tento não pensar nisso. Até algumas semanas atrás, eu era o anestesist­a que as mulheres viam ao dar à luz. Fazia uns sete partos por dia, em geral cesáreas e epidurais. Trabalho em um grande hospital público da Universida­de de IllinoisCh­icago e costumo fazer partos de alto risco.

A nossa equipe teve uma reunião no dia 16. Chicago está se tornando o epicentro da pandemia. Nossa UTI está praticamen­te lotada de pacientes com covid-19. A onda só está começando e precisamos limitar nossa exposição.

Todo mundo concordou que deveríamos destinar uma pessoa para as entubações durante o dia e outra à noite e eu comecei a pensar. Tenho 33 anos. Não tenho filhos pequenos em casa. Não moro com pais idosos. Uma hora depois da reunião, mandei um e-mail para minha supervisor­a. “Posso fazer isso sem problemas.”

Agora, as entubações viraram rotina. Quando você está lidando com um paciente que não está recebendo oxigênio suficiente, cada segundo se torna crucial. Muitas vezes, fico chocado ao entrar no quarto e ver os pacientes. A maioria dos que entubei é jovem – em seus 30, 40, 50 anos. São pessoas que entraram no pronto-socorro porque estavam tossindo há um dia ou dois, ou às vezes, há algumas horas. Quando chego, estão com insuficiên­cia respiratór­ia grave.

Preciso encontrar uma maneira de manter a coerência para fazer o que tenho de fazer. Às vezes, choro. Mas, ao chorar, posso embaçar o meu protetor de rosto. Na maioria das vezes, o olhar é de medo. Mas, às vezes, honestamen­te, é de alívio. Coloco a máscara no paciente e dou por alguns minutos os 100% de oxigênio. Depois, dou a medicação para que durmam. Começo a introduzir o tubo, esta é a oportunida­de de fazer com que o vírus seja expelido no ar.

A via aérea do paciente está totalmente aberta a esta altura – sem máscara, sem nada. As pessoas podem tossir quando o tubo desce na direção da traqueia, uma tosse profunda, forte. A minha máscara e capuz podem ficar cobertos de fluido. Em geral, sob a forma de minúsculas gotículas. O vírus, como uma espécie de aerossol, pode flutuar no ambiente. É como se o médico estivesse muito próximo de um reator nuclear.

Estou olhando o monitor agora e há um paciente que não vai sobreviver até amanhã. É uma sensação de impotência olhar alguém que está morrendo. O nível de oxigênio cai, a frequência cardíaca diminui, a pressão sanguínea também. Os pacientes estão morrendo no respirador e, às vezes, levam embora seus corpos com o tubo ainda nas suas vias aéreas.

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KYLE MONK/THE WASHINGTON POST Risco. ‘Posso ser a última pessoa que os pacientes verão’

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