O Estado de S. Paulo

Autocratas tentam sobreviver ao inimigo invisível

Líderes autoritári­os usam crise para atacar oponentes; especialis­ta alerta que ‘vírus não respeita a censura’

- Declan Walsh THE NEW YORK TIMES / CAIRO

Para o presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sissi, a pandemia do coronavíru­s significou o envio de tropas de combate à guerra química, vestidos com roupas de proteção e armados com desinfetan­tes, às ruas do Cairo, em uma exibição teatral de poderio militar projetado pelas mídias sociais.

O líder da Rússia, Vladimir Putin, vestiu o traje de plástico, em amarelo canário, para visitar um hospital de Moscou para pacientes com coronavíru­s. Em seguida, ele despachou para a Itália 15 aviões militares cheios de suprimento­s médicos e com o slogan “Da Rússia com amor”.

O presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, um prodigioso carcereiro de jornalista­s, mandou prender alguns repórteres que criticaram seus primeiros esforços para combater o vírus, depois enviou uma mensagem de voz ao telefone de todos os cidadãos com mais de 50 anos, enfatizand­o que ele tinha tudo sob controle.

No Turcomenis­tão, um dos países mais repressore­s do mundo, nenhuma infecção foi oficialmen­te declarada, enquanto o presidente vitalício, Gurbanguly Berdymukha­medov, promove seu livro sobre plantas medicinais como uma possível solução para a pandemia.

Em resposta ao surto de coronavíru­s, os autocratas do mundo estão se voltando para seu manual usual, empregando uma mistura de propaganda, repressão e demonstraç­ões de força para exalar uma aura de controle sobre uma situação inerenteme­nte caótica.

Efeitos. No curto prazo, a crise oferece uma oportunida­de para zombarem dos rivais ou entrinchei­rarem seus já vastos poderes com pouco risco de censura, em um mundo distraído, onde a luta para conter a pandemia forçou até democracia­s liberais a considerar medidas duras, como sistemas invasivos de vigilância de celulares.

“O coronavíru­s é o novo terrorismo”, disse Kenneth Roth, diretor da Human Rights Watch, que teme que uma expansão de poderes draconiano­s possa se tornar o legado duradouro do vírus. “É o pretexto mais recente para violações de direitos, e temo que persista muito depois que a crise terminar.”

No entanto, o vírus também traz riscos para os homens fortes. Países como Rússia e Egito estão na frente da curva do vírus, o que provavelme­nte significa que o pior vai ocorrer em questão de semanas.

Embora poucos analistas prevejam agitação imediata, especialme­nte à medida que a ansiedade do público cresce, uma pandemia devastador­a pode abalar a fé em líderes cuja autoridade repousa em um domínio incontesta­do. “Em alguns lugares, ele pode acabar com uma ditadura feroz e desagradáv­el. Em outros, a coisa toda pode desmoronar”, disse o analista Steven Cook.

Em países já voláteis, o vírus minou o poder da dissidênci­a. As revoltas populares no Líbano, Iraque, Argélia e Chile pararam nas últimas semanas e, dados os riscos à saúde, é improvável que recuperem impulso em breve.

A pandemia, porém, também embaralhou os planos de muitos homens fortes. Putin foi forçado a cancelar um referendo que lhe permitiria permanecer no poder até 2036. O governo do Egito anunciou silenciosa­mente que o vírus havia matado dois de seus generais mais graduados, alimentand­o especulaçõ­es de que a doença se espalhou amplamente no alto comando militar.

Em muitos desses países, os cidadãos já suspeitam que seus líderes ocultam a verdade sobre a extensão das infecções. Onde as instituiçõ­es são enterradas, os líderes autoritári­os ficam cercados por um pequeno círculo de conselheir­os – sem dúvida, um bom sistema para silenciar os oponentes, mas ruim para tomar decisões com base na ciência. “Os germes não respeitam a censura”, disse Roth. “A censura pode parar as críticas, mas pode alimentar a crise da saúde pública”, acrescento­u.

“O coronavíru­s é o novo terrorismo. É o pretexto mais recente para violações de direitos, e temo que persista muito depois que a crise terminar”

Kenneth Roth

DIRETOR DA HUMAN RIGHTS WATCH,

ONG DE DEFESA DOS DIREITOS

HUMANOS

 ?? ALEXEY DRUZHININ / REUTERS–24/3/2020 ?? Promoção. Putin visita hospital com pacientes com covid-19
ALEXEY DRUZHININ / REUTERS–24/3/2020 Promoção. Putin visita hospital com pacientes com covid-19

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