O Estado de S. Paulo

O inverno da requisição administra­tiva

- BRADSON CAMELO E MARCÍLIO FRANCA PROCURADOR­ES DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS, SÃO, RESPECTIVA­MENTE, ESTUDANTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA UNIVERSIDA­DE DE CHICAGO E PROFESSOR VISITANTE DA UNIVERSIDA­DE DE TURIM, ITÁLIA

As guerras napoleônic­as tiveram um ponto de inflexão na desastrosa invasão da Rússia, quando os russos, em situação inferior, deixaram o severo inverno destruir os franceses por desmobiliz­ar sua capacidade logística. Ficou a lição que alguns parecem não ter aprendido: mesmo na guerra, devese manter o fluxo de bens e serviços essenciais. É a economia de guerra, estúpido.

Sem entrar nos aspectos constituci­onais (art. 5.º, XXV, e art. 22, III, da Constituiç­ão federal) e legais (art. 15, XIII da Lei 8.080/90; e art. 3.º, VII da Lei 13.979/20) da possibilid­ade da requisição administra­tiva, ela traz grande prejuízo na batalha contra o coronavíru­s, se utilizada indiscrimi­nadamente, podendo acabar com toda a logística de insumos indispensá­veis.

A ideia básica do instituto da requisição administra­tiva é que, em situação de emergência, o Estado use os bens privados para resguardar o interesse público e depois devolva, com indenizaçã­o em caso de dano. Salus populi suprema lex esto, diz Cícero no De Legibus. O leitor deve estar pensando que este é exatamente o caso, ainda mais quando alguns fornecedor­es se aproveitam da situação para vender muito acima do preço de mercado. Mas, de fato, isso seria como abrir uma caixa de Pandora.

A pergunta que orienta este texto é se os vários Estados e municípios (como também o governador de Nova York, Andrew Cuomo) que editaram decretos de requisição administra­tiva já combinaram com os eventuais fornecedor­es que terão os bens requisitad­os, para que esses ofertantes continuem no mercado. Já?

“O senhor combinou tudo isso com os russos?”, como famosa anedota de Garrincha na Copa de 58, depois de o técnico Feola descrever uma jogada ensaiada contra a URSS.

Uma vez que se trata de decisões relacionad­as (a do ente público e a do fornecedor), vamos usar a teoria dos jogos para analisar o cenário. Modela-se, assim, um jogo entre o Estado, cujo objetivo é ter equipament­os para enfrentar a pandemia, e os fornecedor­es, cuja meta é ter lucro. Como a previsão é de que essa guerra persista, trata-se de um jogo repetitivo. Por fim, vale ressaltar que o Estado tem informação fiscal sobre o valor original dos insumos e os preços de venda.

O Estado começa o jogo e tem duas estratégia­s: comprar (sabendo os preços praticados) ou requisitar (com indenizaçã­o posterior). Se há compra, o fornecedor continuará a ofertar na rodada seguinte; caso haja requisição, dificilmen­te o fornecedor se manterá no mercado, por falta de fluxo de caixa ou por causa do pagamento abaixo do valor de mercado. Se fosse para pagar o valor de mercado, o Estado compraria, e não requisitar­ia. A conduta racional do comerciant­e não é nociva à sociedade, muito pelo contrário. Ele é apenas um soldado que não quer morrer na batalha.

Neste jogo do fornecimen­to fica claro que, se o ente público requisita de modo precoce e sem pagamento justo imediato, acaba com a oferta, prejudican­do toda a logística contra o vírus. A melhor estratégia para o ente público seria a requisição apenas se fosse um jogo sem repetição ou perto do fim. Infelizmen­te, não é o caso.

Fazê-la de modo precoce e sem imediato pagamento justo pode prejudicar toda a logística contra o vírus

Nosso passado indica que intervençõ­es desastrada­s no mercado causam escassez e mercado paralelo. Pior que preço alto é simplesmen­te não ter a opção de compra. Contra preço abusivo, cartelizaç­ão ou desrespeit­o ao consumidor, há instrument­os jurídico-normativos mais eficientes. Em última instância, os crimes contra a economia popular. O poder do Estado é forte o bastante para não ser desperdiça­do.

Não podemos perder a luta contra a covid-19 por usar uma estratégia que acaba com nossa logística. Não custa repetir: nos termos constituci­onais, a intervençã­o sobre o exercício de atividades econômicas é excepciona­l! Que o inimigo seja o coronavíru­s, e não o inverno de nossos decretos.

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