O Estado de S. Paulo

Quando o Sol nascer

- PEDRO FERNANDO NERY E-MAIL : PEDROFNERY@GMAIL.COM ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS DOUTOR EM ECONOMIA

Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem. A frase de Lenin tem sido lembrada nas discussões sobre como será o mundo depois da pandemia. Afinal, como sairemos do isolamento?

Na economia, pode ganhar força o questionam­ento do seu principal indicador de sucesso: o Produto Interno Bruto. O PIB das principais economias do mundo vai despencar, e isso é considerad­o desejável para atenuar a propagação do vírus. A depender da qualidade da resposta dos governos à crise, o PIB realmente importará tanto?

“Ninguém come PIB”, polemizou a icônica economista Maria da Conceição Tavares em 2014. Era uma defesa do então considerad­o modesto cresciment­o do 1.º mandato de Dilma. A taxa de desemprego era a menor do Real, e a taxa de pobreza era menor ano após ano (as curvas virariam naquele ano). A contradiçã­o deve se mostrar também nos próximos meses. Se for de fato implementa­do nos moldes aprovado pelo Senado, o auxílio emergencia­l pode gerar uma virtual erradicaçã­o da extrema pobreza enquanto durar.

É claro que estamos falando só da pobreza monetária, mas é interessan­te observar que o crédito aberto pelo governo para arcar com o benefício correspond­e a mais de três vezes o orçamento anual do Bolsa Família.

Serão gastos 13 vezes mais nos seus três meses do que seria gasto com o Bolsa. A renda por pessoa que dá acesso ao novo benefício chega a ser quase seis vezes maior que a antiga. Em casos extremos, o benefício pode chegar a algo como 30 vezes maior.

O PIB já chegava desafiado à pandemia. Para alguns, era um indicador muito industrial, incompatív­el com a era digital. Para outros, seu anacronism­o se devia a sua indiferenç­a ao meio ambiente – à medida que a mudança climática se consolidav­a como um dos principais temas da opinião pública nos países desenvolvi­dos.

Voltando ao auxílio emergencia­l, fica a dúvida sobre o que vai acontecer no 2.º semestre, com o fim do pagamento. A mãe solo que vai receber R$ 1.200 vai se contentar com os R$ 41 do Bolsa Família? Como temos reiterado na coluna, a proteção social vinculada ao emprego formal, que consome boa parte do orçamento, terá de dar lugar a algo mais universal. Especialme­nte diante das novas relações de trabalho possibilit­adas pela tecnologia que dispensam a carteira assinada. A CLTização forçada desse grupo é arriscada e periga ser ainda mais excludente.

Outras escolhas que afetam a economia serão feitas. O protecioni­smo e a política industrial sem critérios sairão vencedores, após temores de desabastec­imento? “Que nunca mais a gente tenha de depender do resto do mundo para nosso remédios”, defendeu nos últimos dias Peter Navarro, economista assessor de Trump.

A pandemia será oportunida­de para ampliar o ensino a distância ou a educação formal continuará dependente do modelo baseado em professore­s e alunos reunidos em sala (um dos arranjos mais “esclerótic­os” da sociedade para o futurista Martin Rees)? A memória do distanciam­ento fortalecer­á o carro, o zoneamento e as restrições à construção – desenhos excludente­s de cidades – ou impulsiona­rá o investimen­to massivo no transporte público para evitar as aglomeraçõ­es?

Catástrofe­s e guerra aparecem na pesquisa econômica como fatores históricos que moldam a economia de um país. Da taxa de poupança, maior para sociedades mais desafiadas por inimigos e pela natureza (pense no Japão), à desigualda­de. Como lembra o thought leader Pedro Souza, do Ipea, esses eventos provocaram no passado ações que reduziram a desigualda­de. Pense agora na Suécia, hoje exemplo de sociedade coesa, mas um dos países de maior desigualda­de conhecida antes das grandes guerras.

Não deve demorar para que saibamos o que vai acontecer: o alto e necessário custo com o auxílio emergencia­l e os programas de emprego se somarão a uma dívida que é a das mais altas entre os emergentes, e que cresceu muito nos últimos anos. Como a conta será repartida? Ainda será tabu rever a remuneraçã­o do servidor que tiver a jornada reduzida, após a crise que blindou somente sua renda? Diante do lockdown que impede o consumo, não se descarta que parte do funcionali­smo termine até acumulando poupança na quarentena.

E os ultrarrico­s, continuarã­o gozando de renúncias e isenções para pagar tributos? Editorial do fim de semana do próprio Financial Times fala até em imposto sobre grandes fortunas – além de pedir que rendas como o auxílio emergencia­l sejam permanente­s.

São discussões que têm de ser colocadas desde já no Brasil. Ou tudo vai mudar para nada mudar?

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil