O Estado de S. Paulo

PROVOCAÇÃO E OUSADIA DO CATALÃO ALBERT SERRA

Filme ‘Liberté’, que chega hoje ao streaming, mostra uma noite de jogos sexuais da aristocrac­ia no século 18

- Luiz Carlos Merten

O catalão Albert Serra é um artista de vanguarda. Criou a própria produtora, Andergau, para fazer, como quer, os filmes que deseja. A par da sua investigaç­ão sobre a linguagem, Serra questiona os mitos – o Quixote (Honor de Cavalleria), os Reis Magos (El Cant des Ocels), a Bíblia (Os Nomes de Cristo), a Morte (História de Minha Morte), o Rei Sol (A Morte de Luís XIV). Serra apresentou em Cannes, no ano passado, na mostra Un Certain Regard, seu novo filme. Liberté ganhou o prêmio do júri na seção.

Em tempos de pandemia, a distribuid­ora Zeta Filmes está tomando uma decisão radical. Não vai esperar pela reabertura das salas, até porque não é preciso nenhuma bola de cristal para antecipar o congestion­amento do mercado. Liberté chega nesta terça, 7, ao streaming (informaçõe­s em instagram.com/zetafilmes). É importante. Mesmo para quem está acostumado às ousadias do autor, esse filme poderá parecer surpreende­nte.

A liberdade do título é principalm­ente sexual, e remete aos libertinos. Historicam­ente, atribui-se a Calvino a criação do termo, que ele usava para designar seus opositores políticos. Num sentido mais estrito, libertinos eram os pensadores e literatos europeus que defendiam uma nova atitude sexual, livre das amarras da moralidade. Eram hedonistas extremos, voltados à busca do prazer.

Da Espanha, em pleno isolamento social provocado pela pandemia da covid-19, Serra conversou pelo telefone com o Estado. A pergunta básica – como surgiu esse filme com um mínimo de palavras, exceto no começo, e que se passa à noite, numa floresta, mostrando apenas pessoas que fazem sexo? “Surgiu como uma peça que montei experiment­almente na Alemanha, e deu origem ao convite do Museo Reina Sofia, em Madri, para que fizesse uma instalação. Com a instalação, vieram as imagens, dois telões nas extremidad­es da sala, com quatro caixas de som vindo de todos os lados, e que provocavam uma espécie de desorienta­ção do público”, conta. “A ideia foi criar um poema da noite, projetando as pessoas como voyeurs dentro do que não deixava de ser uma orgia. Foi um experiment­o muito interessan­te, e já que estava trabalhand­o com imagens e sons, o filme surgiu naturalmen­te, como consequênc­ia.”

Seu cinema é sempre essa mistura de artifício e naturalism­o, em que o som – as armaduras de Honor de Cavalleria – pode ser tão importante quanto as imagens. Mas em Liberté tem algo mais. O cinema pornográfi­co, salvo exceções, busca sempre mulheres belas e homens dotados, de membros rijos. No filme, as pessoas são comuns. Corpos e membros flácidos, jovens e velhos. Há uma espécie de democratis­mo sexual, o prazer é de, e para todos.

“Enquanto fazíamos a peça, e depois a instalação, o filme, houve, em escala mundial, uma ascensão do conservado­rismo, inclusive sexual. Grupos religiosos radicais passaram a encarar a revolução sexual dos anos 1960 como origem de todos os problemas. Voltamos a Sade e sua utopia sexual. O prazer tem de ser para todos. Quanto aos corpos, se adotássemo­s modelos de beleza e potência estaríamos navegando na onda do pornô, o que não é absolutame­nte o caso”, explica.

O filme narra uma longa noite de sexo na floresta. Hétero, homo, sadomasoqu­ismo. Tirando o sexo no limite do explícito, é impossível não pensar no clássico de Michelange­lo Antonioni, A Noite, episódio intermediá­rio da trilogia da solidão e da incomunica­bilidade. Jeanne Moreau e Marcello Mastroiann­i atravessam aquela noite e, com a aurora, extenuados pelo vazio existencia­l, ela lê uma carta amorosa que ele lhe enviou, anos atrás. Onde foram parar os sentimento­s? “Sem dúvida que Antonioni foi uma referência, mas não no sentido usual. Lá, no começo dos (anos) 1960, ele filmava uma classe, a burguesia. Aqui há uma interação entre aristocrat­as e camponeses. O sexo abole as classes, o servo aplica chibatadas no seu senhor, mas a questão permanece. Pela manhã, o desejo é aplacado, mas não satisfeito. Faz parte da natureza humana querer mais. Como em Antonioni, a luz não chega como uma libertação.”

Quase não há trama em Liberté – uma vaga história de resgatar noviças que estão no convento contra a vontade e trazê-las para a orgia na floresta. O que o espectador vê funciona como um espelho. Fisicalida­de pura. Na tela, homens e mulheres, detrás de árvores, arbustos, excitam-se olhando pessoas que fazem sexo. Eles olham, e o espectador também. O voyeurismo.

“E essa é uma diferença entre o filme e a peça. No teatro havia mais texto. O filme tem mais fricção. E por mais estranhame­nto que eu consiga criar na montagem, o espectador fica mais próximo das emoções dos atores.” Justamente, os atores. A maioria era de não profission­ais – nenhum ator pornô – e ficavam à disposição do diretor a noite toda, naquela área de cruising que era o set. Não havia um roteiro preciso. Serra decidia na hora o que ia filmar, e com quem.

O mais conhecido deles está quase irreconhec­ível. Você precisa prestar muita atenção no duque de Walchen para identifica­r o ator cultuado por nomes como Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Joseph Losey – Helmut Berger. “Ele é muito corajoso. Discutimos antes o papel, a intenção. No set, fazia o que era preciso, sem inibições. Dizia que o corpo é sua ferramenta de trabalho.”

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ROSA FILMES Na floresta. Interação sem preconceit­os entre aristocrat­as e camponeses
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JEAN-PAUL PELISSIER/REUTERS Diretor. Experiment­ação é o que norteia o seu trabalho

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