O Estado de S. Paulo

‘NÃO NOS TORNAMOS SUPER-HERÓIS’

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Médica intensivis­ta desde 2008, Mariana Perroni já trabalhou em todo tipo de hospital: de pequeno e grande porte, no sistema público e no privado, no Brasil e fora dele – inclusive em uma situação de catástrofe, no Haiti, após o terremoto de 2010. Mas nem toda a experiênci­a no campo fez com que Mariana já tivesse visto algo parecido com a pandemia da Covid-19. “Tem sido usual chegar ao plantão na UTI e me deparar com todos os pacientes entubados, o que é algo que eu, sinceramen­te, não me lembro de ter vivido’, explica. Leia abaixo a entrevista com a médica.

Em que aspectos seu trabalho mudou desde o início da pandemia de Covid-19? Novas UTIs estão precisando ser disponibil­izadas de forma suprir a demanda. A mesma equipe precisa cobrir mais dias e horários. Em diversos hospitais, já existem três escalas de plantão: a usual, a de contingênc­ia e a de “contingênc­ia da contingênc­ia”(esta última para substituir colegas que se infectam e são afastados ou que fazem parte do grupo de risco para desenvolve­r formas graves da doença). O tempo que passo na UTI quadruplic­ou em março em comparação a fevereiro.

Pessoalmen­te, como você enxerga esse momento?

A especialid­ade que eu escolhi por amor tem sido uma das mais requisitad­as e visadas no contexto atual. Por mais cansativo e desafiador que seja, é extremamen­te gratifican­te estar de N95 usando meu conhecimen­to à beira do leito, em prol do chamado mais intenso da minha carreira e, possivelme­nte, da minha vida. Para tratar e confortar quem precisa.

É reconforta­nte ter o reconhecim­ento da população?

O sacrifício é enorme, mas, ao mesmo tempo, não nos tornamos super-heróis. Eu e todos os profission­ais da saúde na linha de frente também somos pessoas vulnerávei­s à infecção. Mas somos comprometi­dos e estamos fazendo nosso trabalho. Então, por mais que as palmas na janela sejam emocionant­es e nos motivem, o que queremos mesmo é a certeza de que vamos ter equipament­os de proteção e ferramenta­s para conseguir continuar fazendo nosso trabalho da melhor forma.

O que está sendo mais difícil pra você neste período?

Em um sentido mais macro, tenho me sentido dentro daquele livro do Charles Dickens que mostra para o personagem principal o “fantasma do natal futuro”, se ele continuar se comportand­o da mesma forma. Esse vai ser o futuro do Brasil, se as coisas continuare­m como estão.

E no dia a dia do trabalho, convivendo com a situação dos doentes de perto?

O que mais me afeta é perceber que pessoas passam por isso sozinhas e assustadas em seus leitos. E distantes de quem mais importa para elas. Posso tentar fazer meu melhor para ajudar a confortá-las, mas não é igual. Os óbitos, nessas condições, dilaceram qualquer coração./MARCELA PAES

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