O Estado de S. Paulo

O Brasil contra o mundo

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O País não pode cometer erros da natureza daqueles cometidos pela ala lunática do governo.

Oexercício da diplomacia também está sendo bastante prejudicad­o em razão da epidemia de covid-19, que já levou ao cancelamen­to de diversos encontros multilater­ais. Tal restrição ocorre no instante em que as relações internacio­nais já não estavam numa boa fase, particular­mente em razão da emergência do nacionalis­mo radical capitanead­o pelos EUA de Donald Trump.

Assim, a covid-19, antes de ser causa do distanciam­ento diplomátic­o, começa a servir como “desculpa muito convenient­e” para um esfriament­o que já era desejado, como notou o exembaixad­or norte-americano Ronald Neumann, presidente da Academia Americana de Diplomacia, ao jornal Japan Times.

Ou seja, no momento em que a cooperação é imprescind­ível, muitos países se insularam ainda mais, na base do cada um por si, pondo em risco mesmo blocos consolidad­os, como a União Europeia, ou então a relação histórica entre EUA e alguns de seus aliados tradiciona­is.

Mas a emergência causada pela pandemia vem obrigando mesmo os EUA a abandonar momentanea­mente sua atitude agressiva pelo menos em relação à China. Depois de ter chamado o novo coronavíru­s de “vírus chinês”, Trump, diante do avanço da covid-19 em seu país, teve de telefonar para o presidente da China, Xi Jinping, para estabelece­r “estreita colaboraçã­o” – palavras do presidente norte-americano – no combate à epidemia. Não à toa: a China é o principal fabricante mundial de equipament­os e materiais hospitalar­es necessário­s para enfrentar o vírus, e os EUA, por sua vez, são hoje o principal foco da epidemia.

Se mesmo a maior economia do mundo entendeu ser necessário adotar o pragmatism­o para lidar com a pandemia de covid-19, nada explica que o Brasil, cuja economia é apenas uma fração da norte-americana, se permita provocar os chineses numa hora dessas.

Primeiro, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, disse que “a culpa” pela epidemia “é da China”. Depois, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, numa publicação de teor preconceit­uoso nas redes sociais, sugeriu que a China se beneficia com a crise. Tudo isso em meio à dificuldad­e para obter equipament­os médicos chineses para combater a epidemia e diante da necessidad­e óbvia de manter aberto o mercado chinês para os produtos brasileiro­s, essencial para a recuperaçã­o do País.

Para sorte do Brasil, contudo, o governo Bolsonaro não se limita à ala lunática representa­da pelos filhos do presidente e pelos ministros “ideológico­s”, quando não pelo próprio Bolsonaro. Há uma parte que faz o exato oposto, procurando reforçar as pontes com o exterior, em particular com a China, como lembrou, em entrevista ao Estado, o embaixador Sérgio Amaral.

“De um lado, o governo constrói, com a ministra Tereza Cristina (da Agricultur­a), o lado do agronegóci­o. Na área de infraestru­tura, o ministro Tarcísio de Freitas desenvolve­u projetos grandes que podem aumentar a produtivid­ade”, comentou o embaixador. O problema, diz Sérgio Amaral, é que, “se de um lado o governo constrói, do outro destrói” – e isso num momento de grave retração do comércio mundial, que já vinha ocorrendo antes da epidemia e que agora tende a se acentuar.

Países como o Brasil não podem cometer erros dessa natureza. Até Bolsonaro, a diplomacia brasileira se pautava por nutrir boas relações com todo o mundo, justamente por não ter a força das grandes potências nem poder se permitir fechar portas. Hoje, o alinhament­o incondicio­nal aos EUA limita o horizonte comercial brasileiro e ameaça nossa posição até mesmo em mercados já conquistad­os.

Nesse sentido, o Itamaraty, como enfatizou Sérgio Amaral, está sendo incapaz de coordenar os interesses dos Ministério­s na área externa, exatamente porque também está imerso na ideologia deletéria que move Bolsonaro e seus assessores aloprados. Por isso, quando acabar a epidemia, vaticina o diplomata, “o Brasil sairá enfraqueci­do”, carente de reformas e com um governo movido a complexo de perseguiçã­o: “O mundo não está contra o Brasil, nós é que estamos contra o mundo”.

País não pode cometer erros da natureza daqueles cometidos pela ala lunática do governo

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