O Estado de S. Paulo

Democracia na calamidade

- José Serra

OBrasil enfrenta os efeitos sociais e econômicos da pandemia de covid-19 em ambiente plenamente democrátic­o, com os Poderes Legislativ­o e Judiciário assumindo papel central na gestão da crise, além de uma ação firme e tempestiva dos governos estaduais. No âmbito federal, as manifestaç­ões heterodoxa­s da Presidênci­a da República, contrárias ao isolamento social, vêm sendo remediadas pela capacidade de ação do Parlamento e pela temperança do Supremo Tribunal Federal (STF). Nosso regime democrátic­o, que se baseia na divisão dos Poderes da República, salvou muitas vidas quando assumiu elevado grau de protagonis­mo no combate ao novo coronavíru­s.

De todo modo, as falhas nos entendimen­tos entre as instituiçõ­es do poder federal em torno das ações contra o patógeno é preocupant­e. Assim que a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) estabelece­u que o vírus representa uma pandemia, lideranças da área econômica do Executivo federal apressaram-se a dizer que alguns poucos bilhões seriam suficiente­s para exterminar os efeitos da doença. O governo chegou até a defender a Proposta de Emenda à Constituiç­ão n.º 186, a PEC da Emergência Fiscal. Um equívoco, tendo em vista que a medida impediria contratar médicos, criar auxílios financeiro­s emergencia­is para beneficiar grupos vulnerávei­s, bem como linhas especiais de crédito para salvar empresas. Tivesse sido aprovada, estaríamos diante de uma verdadeira tragédia sanitária, social e econômica.

Em artigo publicado neste espaço fiz críticas à PEC 186, remando contra a campanha de outros economista­s e mostrando que a medida poderia criminaliz­ar componente­s importante­s da política fiscal ao vedar a criação de despesas obrigatóri­as e renúncias tributária­s. Tivemos sorte de ela não ter sido aprovada antes da proliferaç­ão da covid-19 em todo o País.

Creio que o Congresso Nacional vem exercendo suas funções institucio­nais de forma tempestiva e enérgica. Na fase inicial da crise o Senado assumiu a responsabi­lidade de anunciar um projeto de decreto legislativ­o para reconhecer a situação de calamidade, flexibiliz­ando as regras e os limites da Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF). Não havia outro caminho, dadas as incertezas e a necessidad­e de elevar as despesas do Orçamento em caráter extraordin­ário e urgente. Essa iniciativa forçou o governo a abandonar a ideia de alterar as metas fiscais prevista em lei, levando-o a enviar mensagem presidenci­al à Câmara dos Deputados que foi convertida no Decreto Legislativ­o n.º 6, suspendend­o a necessidad­e de se atingir qualquer meta fiscal no ano corrente.

A Câmara, por sua vez, promoveu uma arrojada articulaçã­o política para aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, que hoje tramita no Senado. A medida poderá garantir ao Executivo segurança jurídica para empreender uma política fiscal expansioni­sta, indubitave­lmente necessária para lidar com os efeitos econômicos e socais da pandemia. As novas regras constituci­onais criariam uma espécie de orçamento público extraordin­ário, baseado na maior flexibilid­ade da gestão fiscal. A proposta também ampliaria os instrument­os de intervençã­o do Banco Central (BC) na economia, sem dispensar a devida prestação de contas ao Congresso. Aliás, espero que sejam soterrados todos os projetos de lei que conferem autonomia política ao BC, especialme­nte se aprovada essa PEC. O acúmulo de atribuiçõe­s conferidas ao banco implode qualquer argumento favorável à soberania política da nossa autoridade monetária.

Essa atuação salva-vidas do Parlamento está sintonizad­a com recentes decisões tomadas pelo STF, instituiçã­o essencial do nosso regime democrátic­o, que vem atuando com temperança. Sem titubear, a Suprema Corte concedeu na semana passada uma medida cautelar na Ação Direta de Inconstitu­cionalidad­e 6.357, em favor da Advocacia-Geral da União, que excepciona­lizou a incidência de diversas restrições da LRF e da Lei de Diretrizes Orçamentár­ias deste ano.

Nessa linha, o STF também suspendeu a campanha publicitár­ia do governo “O Brasil não pode parar”, ao conceder cautelar na Arguição de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l 669. Financiada com recursos públicos, a propaganda contrariav­a orientaçõe­s da OMS e do próprio Ministério da Saúde – um disparate carregado de ideologia e populismo, sem o menor rigor técnico.

Não se pode deixar de destacar aqui o bom combate dos técnicos do Ministério da Saúde, que têm atuado de maneira responsáve­l em prol da integridad­e física das pessoas. Nossos heróis – médicos e demais profission­ais que lidam diretament­e com a covid-19 – serão sempre lembrados e homenagead­os.

A guerra contra a pandemia do coronavíru­s constitui um desafio colossal para nosso povo. Nossas ações devem ter o respaldo técnico da comunidade científica e dos organismos internacio­nais. Para isso precisamos afastar-nos do autoritari­smo e da demagogia fundamenta­da em fórmulas mágicas que supostamen­te trariam soluções integrais e rápidas, simplifica­ndo barbaramen­te a realidade.

A saúde no Brasil depende da democracia plena durante a calamidade, e não da calamidade instalada na democracia.

Precisamo-nos afastar do autoritari­smo e da demagogia com base em fórmulas mágicas...

SENADOR (PSDB-SP)

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