COMO A LEITURA VIROU PROTEÇÃO NA QUARENTENA
Livros são uma poderosa arma para esquecer os desconfortos provocados pela solidão obrigatória pela qual passamos hoje
Devo a este coronavírus um efeito inesperado: é uma felicidade, quase uma festa, saber ler, sofregamente. Desse modo, posso, à minha maneira, esquecer dos desconfortos da solidão obrigatória e me bronzear em uma praia do Nordeste, participar da epopeia guerreira de Bonaparte, ou penetrar sorrateiramente nas alcovas repletas de senhoritas e rendas do século 18.
No entanto, na minha infância, a coisa começou mal. Eu era uma criança dócil, mas me sentia pouco atraído pela leitura. No colégio, tive de engolir como um ganso uma literatura francesa ultrapassada. Fui obrigado a decorar Racine e Corneille. Eu achava que escreviam mal. Seus tormentos me pareciam fúteis e sua linguagem, pretensiosa.
O único que me agradava era La Fontaine, porque eu gostava das raposas que falavam com corvos. Mas preferia desenhos animados naqueles tempos distantes. Achava que Bibi Fricotin se expressava melhor do que Andrômaco. Minha mãe comprava livros mais adequados à minha idade, Jack London, Curwood, ou mesmo Júlio Verne ou Alexandre Dumas. Começava um ou dois, ficava entediado, e me refugiava em Bibi Fricotin. Ficou decidido que, todo fim de tarde, eu faria uma hora de leitura.
Mamãe instalava ao meu lado um relógio despertador Jazz, cujo toque estridente me libertava. Não se poderia encontrar maneira melhor de detestar os livros. Mas um dispositivo suplementar transformou a penitência em prazer. Na sala onde eu lia, havia uma moça que passava a roupa. Era uma mulher linda, jovem, coquete, sorridente e pouco interessada na leitura. Ela me vigiava com alegria. Eu colocava embaixo do livro que deveria ler um Bibi Fricotin. Juliette passava roupa assobiando umas árias espanholas, porque Orã, onde morávamos, era uma cidade muito espanhola. Trocávamos algumas palavras, risadas, e ela voltava às suas tarefas. Graças a Juliette, a hora de leitura tornou-se deliciosa porque ela era realmente bonita. Acho que ela acabou percebendo o meu estratagema, meu ardil, mas nunca me denunciou. Eu me pergunto, aliás, se não tinha me apaixonado um pouco. Ou mesmo loucamente. Aconteceu que, após algumas semanas, deixei Bibi Fricotin para ler livros de verdade. Mamãe ficou encantada e felicitou Juliette. Foi assim que o meu melhor professor de leitura foi uma espanhola que passava camisas em 1937, quando eu tinha 14 anos.
Anos mais tarde, compreendi que um livro é um milagre. Estava passando as férias com um tio, em sua casa no Var. Volta e meia subia no sótão. Um dia, vi um pequeno volume amarelo de Arthur Rimbaud. Folheei o livro. Fiquei perdido. Estava não sei mais onde. Via letras que, diante dos meus olhos, se arranjavam fazendo um milagre. “A mim. A história de uma das minhas loucuras. Há muito tempo me gabava de possuir todas as paisagens possíveis, e achava risíveis as celebridades, as pinturas e a poesia moderna. Gostava de pinturas idiotas, frontões de portas, enfeites e de telas de saltimbancos, tabuletas, miniaturas populares, de literatura ultrapassada, do latim da igreja, livros eróticos sem ortografia, dos romances das nossas bisavós, refrãos simplórios, ritmos ingênuos...”
Tive de ler noites adentro, sem compreender grande coisa, mas cercado por paisagens, com sois, luas, ruínas, escombros, a música bruta de Rimbaud. Uma formidável viagem, em rincões longínquos, debaixo de chuvas, pelas manhãs e nas noites. Mas o que me fascinava antes de tudo era que as 26 letras do alfabeto que Rimbaud juntara pudessem obter o resultado vertiginoso de me doar o mundo.
Desde aquele dia, a escritura, os livros, a impressão, me enredaram, me prenderam, me fecharam, entregaram e despacharam aos quatro cantos do mundo. Eu não sabia quem era o inventor do alfabeto, sem dúvida um cameleiro fenício, mas o homem era um gênio. Ele concebeu e pôs à disposição de cada um uma minúscula fábrica, capaz de conter todos os pensamentos que foram produzidos pelos homens de ontem e pelos homens de amanhã. É destas reflexões que data o meu amor imoderado pela leitura, porque parece-me compreender o ruído silencioso das válvulas e das molas que me transportam do outro lado do espelho, junto dos matemáticos do século 5 antes de Cristo, nas trincheiras de 1914 ou nos esplendores da Renascença, ou dos Aztecas, ou para uma cena familiar entre um homem e uma mulher do século 9. Em suma, uma página de escrita é um funâmbulo que me envia ao fim de todas as memórias arranjando letras.
Desde então, os meus encantamentos jamais cessaram, nem a lembrança dessa leitura de Rimbaud. Sem esquecer de Juliette. Ainda hoje, cada vez que fecho um livro, ouço o eco do despertador Jazz que me diz que está na hora de terminar minha leitura. /