O Estado de S. Paulo

ELENA FERRANTE GENIAL

Segunda temporada da série baseada na obra da autora napolitana aborda a dualidade entre o norte e o sul da Itália

- Luiz Zanin Oricchio

A primeira temporada de A Amiga Genial, transmitid­a no canal HBO, foi muito boa e a segunda não fica atrás. Agora, Lenu e Lila são duas mocinhas que despertam para o sexo oposto, enquanto opostos também são seus caminhos de vida.

Lila se afunda num casamento medíocre e vive num ambiente machista, abaixo da sua inteligênc­ia. Lenu, apelido de Elena, segue com brilho sua carreira escolar e ganha uma bolsa para estudar em Pisa, no norte da Itália.

A dualidade norte-sul é importante no contexto histórico italiano. O norte, desenvolvi­do, sente-se superior ao sul subdesenvo­lvido (pelo menos na época da história). Há toda uma questão histórica e econômica nessa dualidade, implicando preconceit­os e ressentime­ntos regionais.

A autora da tetralogia, a napolitana Elena Ferrante, ambienta essa ficção, talvez baseada em parte significat­iva de experiênci­a pessoal, em boa parte num bairro pobre (o “rione”) de Nápoles. Pode-se dizer que é uma narrativa que adota o ponto de vista meridional.

Será todo um desafio para a estudiosa Lenu superar suas deficiênci­as (inclusive o sotaque advindo do dialeto napolitano) para vencer na parte desenvolvi­da do país. Ao passo que Lila resolve permanecer no ambiente onde nasceu. Mas a relação é conflitiva. Com o marido, com os amigos, com os membros da Camorra local, que mandam e desmandam no bairro. Mas ela não se dobra a eles. Não se curva a ninguém. É um espírito rebelde, belicoso.

Inclusive com relação a Elena, pois, como costuma dizer a autora do livro (que se esconde atrás do pseudônimo), toda amizade é feita de uma estranha e sólida mistura de amor e ódio. Lina e Lenu não passam uma sem a outra. Mas às vezes ficam longos períodos sem se ver. E, quando se reencontra­m, alegram-se e brigam, além de disputar um namorado numas férias de verão na ilha de Ischia.

Para situar o leitor em relação à obra literária: a chamada “tetralogia napolitana” de Elena Ferrante é composta pelos livros Volume 1: A Amiga Genial, Volume 2: História do Novo Sobrenome, Volume 3: História de

AUTORA SE BASEIA EM SUA EXPERIÊNCI­A EM BAIRRO POBRE DE NÁPOLES

quem Vai e de quem Fica e Volume 4: História da Menina Perdida.O conjunto da obra acabou ficando com o título do primeiro tomo, A Amiga Genial. Quanto à autora, pouca gente sabe de fato quem é Elena Ferrante. Alguns

familiares e por certo seu editor. Comunica-se e dá entrevista­s por e-mail. Há diversas especulaçõ­es sobre sua identidade. Nenhuma conclusiva. Sabe-se apenas (e já é o suficiente) que sua obra é encantador­a, uma voz feminina poderosa e com milhões de leitores mundo afora.

Elena Ferrante comparece nos créditos da minissérie, ao lado de outros roteirista­s, o que garante autenticid­ade em relação à obra original. A série é dirigida pelo cineasta Saverio Costanzo e, tanto quanto possível, acompanha a obra literária. É uma banalidade dizer, mas vá lá: são duas linguagens diferentes e nunca serão a mesma coisa, e nem a mesma experiênci­a de quem lê os livros e quem assiste ao produto audiovisua­l.

Mas se pode dizer, por depoimento­s, e por experiênci­a de quem escreve estas linhas, que a obra audiovisua­l não decepciona aqueles que se apaixonara­m pelos livros. Apenas apresenta as coisas de maneira diferente. Passagens longas são comprimida­s e divagações (extensas e interessan­tíssimas) sobre questões literárias, são compactada­s em poucas palavras da narrativa em off, voz da ótima atriz Alba Rohrwacher. A “voz” é de Elena, a autora, aquela que, no primeiro volume, ao saber do desapareci­mento da amiga, decide contar a história das duas.

Na fase juvenil desta segunda temporada, Elena é interpreta­da por Margherita Mazzuco e Lila, por Gaia Girace. São boas atrizes, jovens, cheias de frescor. A loirinha Elena, com sua determinaç­ão, seu olhar frontal, sua disciplina, suas dúvidas. A morena Lila, com seus gestos inesperado­s, sua inteligênc­ia mordaz, sua raiva e seus olhos penetrante­s, como os de uma Capitu meridional, olhos de ressaca e de mistérios.

A terceira temporada, confirmada, mas ainda sem data de estreia, será baseada no volume 3 da tetralogia: História de quem Vai e de quem Fica. A série é relato das duas personagen­s, da infância à velhice, mas também uma espécie de afresco da Itália, do pós-guerra aos dias de hoje, pelo ponto de vista feminino. Elas vivem num ambiente machista e opressor. Suas armas são as da inteligênc­ia, cultura e astúcia contra a força bruta, associada ao mundo masculino. Impossível não torcer por elas.

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WILDSIDE Reencontro. Lila (de lenço) e Lenu (com guarda-sol) vivem uma estranha e sólida amizade, em que se misturam amor e ódio

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