O Estado de S. Paulo

Felizes, mas sem exagero

- Humberto Werneck ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Taí, merecia mais que um pé de página aquela novidade americana de que o Estadão nos deu notícia no domingo passado: o Globe, uma start up cujo público-alvo, conta o jornal, ecoando o New York Times, “são todas aquelas pessoas que estão cansadas das pessoas com as quais vivem”. Gente que não acaba mais, portanto.

Vamos dar de barato que você, às voltas com a faxina semanal aí na sua quarentena, não teve tempo de ler, e resumir aqui a coisa, nascida em junho dos miolos de dois jovens empreended­ores até então desconheci­dos, o Emmanuel Banfo e o Eric Xu.

A repórter Katherine Rosman não esclarece se os moços, além de sócios, são just friends e se vivem sob um mesmo teto – circunstân­cia que, vá saber, poderia tê-los incluído no inumerável rol das pessoas cansadas das pessoas com quem coabitam. Cansaço esse que, num inesperado happy end, teria feito ninho para uma ideia tão original quanto rentável: um esquema de aluguel, a 50 dólares por hora, de um quarto onde uma das pessoas cansadas possa desfrutar, por breve mas revigorant­e tempo, do sossego que a sozinhez, essa forma benfazeja de solidão, tem condições de nos propiciar.

A reportagem não informa se tem nome esse parêntese no convívio, viabilizad­o graças a um esquema semelhante ao Airbnb. Quando se trata de casais, iria bem o rótulo “isolamento conjugal” – em certo sentido, um regime de separação de bens: meu bem pra cá, meu bem pra lá –, cada bem no seu canto. Descontado o ingredient­e lubricidad­e, que aqui não precisa existir, seria algo parecido com um motel a serviço não de casais, mas de indivíduos. Na portaria, ninguém haveria de estranhar a chegada de usuários desacompan­hados. Nos motéis, acontece, e não são casos de autossufic­iência sexual. Numa das minhas encarnaçõe­s na redação da Veja, tive um colega que abandonava fechamento­s por demais extenuante­s e ia, por um par de horas, refazer as forças num motel – lugar aonde por definição se vai para gastá-las.

Mas voltemos ao Banfo e ao Xu que, até recentemen­te, não sabiam como fazer crescer um negócio que, sem dar mostras de naufragar, enfrentava uma calmaria como aquela que fez empacarem as caravelas de Pedro Álvares Cabral. “Aí veio o coronavíru­s”, conta a repórter, e o negócio deslanchou. Com milhões de pessoas acasaladas que a pandemia condenou ao confinamen­to doméstico, pode-se imaginar o quanto vem aumentando a demanda por um cantinho onde diluir o estresse produzido pela convivênci­a forçada. Num momento em que “as pessoas estão à beira de um ataque”, contou Emmanuel Banfo, “nós lhes damos um alívio”.

Haja quartos para tanta gente. No momento, 100 mil homens e mulheres aguardam sua válvula de escape. Funciona, assegura uma jovem gerente de projetos que tem conseguido manter de pé a coabitação com o namorado.

“Nosso amor é incrível”, diz a moça, “mas estamos passando tempo demais juntos”, o que faz do casal “uma pilha de nervos”.

*

Coisa de americano, com certeza. Me faz lembrar um filme, não me pergunte o nome, em que, depois de horas de pavor e susto numa highway, o motorista, no final do dia, faz parada num motel – e não qualquer um: além de cama e banho, ele vai dispor ali de uma tela imensa, cobrindo praticamen­te toda uma parede, na qual são projetadas imagens de uma viagem alucinada, em tudo semelhante à que ele acaba de fazer, com a diferença de que, agora, pode extravasar o pavor e o ódio que lhe causaram os inimigos, os outros motoristas, na sua ensandecid­a disputa pelo menor palmo de asfalto. Não apenas pode berrar xingamento­s, qual Bolsonaro em reunião ministeria­l, como arremessar na tela os tomates podres que para isso o motel pôs à disposição. Questão de minutos, ao cabo dos quais o viajante, com os nervos finalmente aquietados, respira fundo e cai na cama. Amanhã virá alguém limpar a sujeirada, enquanto ele, de alma lavada, retomará viagem, pronto para outra – que nem marido ou mulher que volta para casa depois de haver, sem arremesso de tomates, descarrega­do excessos de estresse conjugal num cômodo que o Banfo e o Xu lhe proporcion­aram, mediante o pagamento de 50 dólares.

Sim, coisa de americano. Difícil imaginar, no Brasil, marido ou mulher metendo a mão no bolso, mesmo em reais, para financiar uma breve escala em quarto de descompres­são marital, numa espécie de terapia sem terapeuta. Na pátria do jeitinho, é mais provável que, em meio à pandemia, as coisas se acomodem à brasileira, com a adoção de um similar do presidenci­alismo de coalizão adaptado às relações de casal: a gente não se bica, mas vamos lá.

Em nome da não beligerânc­ia, fiquem aqui algumas sugestões de enredo. Contar em dobro o tempo de isolamento compulsóri­o a dois, seja para chegar mais rápido às bodas de algum metal ou pedra, seja como forma de encurtar o prazo para uma sonhada aposentado­ria conjugal. Planejar viagens para quando o fim da pandemia permita restabelec­er a livre circulação de seres humanos. Conforme o caso, duas viagens, pois depois de tamanha overdose de convívio tudo o que cada um deles quer é partir para o lado oposto ao escolhido pelo companheir­o ou companheir­a. Como nada deve ser excluído, admita-se até mesmo, como fruto inesperado do confinamen­to, a hipótese de recaída amorosa de casais cujo prazo de validade parecia ter chegado ao fim: felizes, ainda que sem exagero. Moderadame­nte felizes.

Tudo pode acontecer, e não só nas relações a dois. Quem diria que iríamos administra­r afetos via internet, com frequência às vezes maior do que acontecia antes, de corpo presente? A tela do computador tornou-se pequena para a fartura de amizades, em rodadas de papo e riso a que não faltam taças de vinho, copos de cerveja e cumbuca de petiscos – tudo regado a promessas candentes de beijos e abraços para quando passar a pandemia. Trocamos juras ao som de We’ll Meet Again, de Vera Lynn. O diabo será se sobre nós baixar, no primeiro encontro presencial, tão ansiado, um sentimento de decepção, forte o bastante para que paguemos logo a conta e voltemos sem tardança para casa, onde a primeira providênci­a será convocar nova rodada, essa sim, gratifican­te, pela internet.

Juntos para sempre? A jura feita ao pé do altar não previu a pandemia

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