ADEUS AO MAESTRO DO CINEMA
Morre, aos 91 anos, Ennio Morricone, autor de mais 500 trilhas
Ele compôs mais de 500 trilhas, de westerns clássicos a Cinema Paradiso.
Houve a parceria de Ennio Morricone com Sergio Leone, e suas trilhas para os spaghetti westerns do grande Sergio não apenas deram uma textura àqueles filmes como tornaram o nome do compositor conhecido, reconhecido. Mas ele sobreviveu mais de 30 anos à morte do parceiro, em abril de 1989. Morricone seguiu criando suas trilhas, teve outras parcerias – com Giuseppe Tornatore, Quentin Tarantino.
Morricone morreu na madrugada desta segunda, 6. Havia sofrido uma queda, fraturou o fêmur, decorreram complicações. Tinha 91 anos – nasceu e morreu em Roma, 10 de novembro de 1928, 6 de julho de 2020, em plena pandemia. Embora a parceria com Leone lhe tenha dado projeção, o maior reconhecimento veio depois. Morricone venceu cinco prêmios Bafta entre 1979 e 1992. Foi indicado cinco vezes para o Oscar, também entre 1979 e 2001. Cabe destacar que o filme, em 79, era Cinzas no Paraíso, de Terrence Malick. Em 2007, recebeu das mãos de Clint Eastwood (que viveu o Estranho sem Nome nos filmes de Leone) um Oscar especial por “suas magníficas e multifacetadas contribuições musicais ao cinema”. Em 2016, e dessa vez concorrendo, ganhou o Globo de Ouro e o Oscar pela trilha de um Tarantino, Os Oito Odiados.
Em outubro de 2018, foi lançado pela Harpercollins Italia, de Milão, um volume precioso. Capa dura, 334 páginas, Ennio. Un Maestro. Conversazione. Na capa, as fotos de Ennio Morricone e Giuseppe Tornatore. As conversas são entre os dois e, de cara, o primeiro capítulo já tem um título sugestivo: A Inspiração Existe. Tornatore, o diretor de Cinema Paradiso, de Malena – para o qual Morricone compôs o mais surpreendente de seus temas, quando o garoto, diante do esplendor de Monica Bellucci, tem sua primeira excitação –, lança uma provocação.
Diz que o público pensa sempre num Morricone eternamente inspirado e ele reage. “Bobagem, pura propaganda. É preciso trabalhar, e muito, a melodia. Primeiro, se escreve e depois é preciso trocar uma nota, porque aquela nota produz uma ruptura insuportável da melodia. É certo que se cria a melodia, que alguém pode ter uma ideia espontânea, mas ‘sulla melodia si lavora.’ Não é magia, é lógica.”
O livro emenda essa fala com outra observação de Tornatore.
Pouco antes de receber seu Oscar de carreira, em outra homenagem, pelo Fórum de Compositores de Los Angeles, Morricone foi apresentado ao público como um melodista. E ele: “É como se estivessem me chamando de diletante. E a verdade é que, se você faz uma melodia que outro arranja, você é mesmo um diletante. Fazer a melodia não é tão difícil. Difícil é instrumentála e tem gente que não sabe fazer isso. Ser definitivo daquela maneira me desagradou, mas tem horas que é preciso calar para não ser descortês”.
Morricone iniciou-se menino. Na época da conversa, já tinha uma trajetória de mais de 80 anos na música. Confessou que lamentava não haver dedicado à mulher, Maria, mais parte do tempo que dedicou às orquestras e aos músicos. Ela nunca se queixou, ele é quem lamentava. E Tornatore pergunta se alguma vez ele dedicou uma canção de amor a Maria? “Nãããooo. Só música absoluta. Temas de amor a gente compõe para os filmes.”
E ele conta como, quando eram jovens, enamorados, levava Maria para o trabalho e a esperava. Ficava no café em frente, tomando alguma coisa e trabalhando como arranjador para a RAI. Arranjava três ou quatro canções por dia. Seu grande mestre foi Johann Sebastian Bach, “o compositor que mais me influenciou. E, depois de mais de um século, (Igor) Stravinski foi o outro que me marcou de maneira decisiva. Um compositor enorme, extraordinário. A mesma capacidade de criar e ‘sfuggire’ (escapar na melodia) de Bach. Foram os polos, mas não foram os únicos.” Cita Giovanni Pierluigi di Palestrina, Claudio Monteverdi e Girolamo Frescobaldi.
Beethoven, Mozart? “Excluo qualquer possível influência deles. E também de Haydn, Schumann, Mendelsohn.” Uma característica que qualquer cinéfilo de ouvido atilado identifica na extensa produção de Morricone: “As cordas são a mãe de uma orquestra.” As cordas, mas também os sopros, que marcam momentos decisivos de Por Um Punhado de Dólares, Por Uns Dólares a Mais, Três Homens em Conflito, Era Uma Vez no Oeste. Naqueles quatro anos e quatro filmes, entre 1964 e 68, Morricone criou um estilo, uma sonoridade. Transformou os westerns de Leone em óperas grandiosas. Sem a música a sustentar aquelas imagens, toda a arquitetura dramática talvez ruísse.
Temas como O Êxtase do Ouro e as cavalgadas ressoam no imaginário de quem aprendeu a amar esses filmes – o cinema. Morricone sobreviveu a Leone para criar outras parcerias. Inscreveu seu nome entre os dos maiores, que também tiveram parcerias notáveis. Nino Rota é tão indissociável de Federico Fellini que a gente até se esquece de suas grandes trilhas para Luchino Visconti, em Rocco e Seus Irmãos e O Leopardo. Bernard Hermann compôs para clássicos de Orson Welles, mas é sobretudo o compositor dos maiores filmes de Alfred Hitchcock. Morricone era dessa estirpe.