O Estado de S. Paulo

Negacionis­mo

- ANA CARLA ABRÃO E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS ✽

Números são um problema. Eles insistem em expor a realidade, em particular, quando queremos negá-la. Na atual crise de saúde tem sido assim. O Brasil se aproxima da triste marca de 65 mil mortos pela covid19. A epidemia, ao mesmo tempo que amaina em alguns Estados, avança de forma impiedosa em outros, revelando a verdade: não se trata apenas de uma “gripezinha”. Haveremos de conviver com ela por muito tempo ainda e a administra­ção dessa convivênci­a será determinan­te no nosso futuro.

Na economia, os números também assustam. A atividade interrompi­da, por receio da contaminaç­ão ou por medidas de restrição, mostra seus reflexos nos números do trimestre que se encerrou. A algum vigor dos primeiros meses do ano, contrapõem-se a realidade do desemprego e da quebra de empresas pequenas, médias e grandes. Trabalhado­res formais sofrem com o fechamento de vagas. Os informais sofrem duas vezes mais, conforme cálculos do professor Hélio Zylberstaj­n, publicado em matéria do Estadão de ontem. Como consequênc­ia do enfraqueci­mento do mercado de trabalho e do aumento dos pedidos de recuperaçã­o e falência, o mercado de crédito reage com volumes menores e custos maiores. Afinal, o risco aumentou.

No campo fiscal, quer seja pelo lado do gasto (aumento), quer seja pelo lado do Produto Interno Bruto – PIB (queda), as perspectiv­as para a relação dívida/pib não são nada alvissarei­ras. Devemos beirar os 100% neste ano, renovando a tendência de cresciment­o pela próxima década segundo a Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI). Essa trajetória coloca pressão sobre outro número: o juro básico. O ineditismo de uma taxa Selic baixa pode estar comprometi­do por um descontrol­e fiscal que só não acontecerá se houver consenso em torno de uma agenda de ajuste e responsabi­lidade fiscais.

Essaéa realidade. O desafio está em saber enfrentá-la e a sabedoria em admi ti-la, tanto nocam poda saúde, quanto noda economia. Para isso, apr iorida deé,e continuará sendo, o controle da epidemia e a garantia de atendiment­o de saúde aos cidadãos. Ao menos até que uma das aclamadas vacinas nos salve. Na economia, assim como na saúde, não se pode esperar de braços cruzados que também a “gripezinha” da recessão seja curada pelas cloroquina­s fiscais e monetárias. Aqui, nem o argumento da boa forma sobrevive.

Na saúde o governo federal já perdeu o pé – e o timing. Coordenaçã­o de esforços, definição clara de protocolos, eficiência na administra­ção de distribuiç­ão de medicament­os, de equipament­os de proteção individual (EPIS) e de ventilador­es e a implementa­ção de uma estratégia de testagem maciça deveriam ter sido prioridade­s. Não foram. O negacionis­mo custou e ainda custará vidas queà história caberá mostrar responsabi­lidades e demonstrar o heroísmo de governador­es e prefeitos que não cederam às falácias federais.

Na economia, ao contrário, ainda há tempo. As prioridade­s aqui são claras, os diagnóstic­os estão feitos e boa parte das propostas está colocada. Assim como as emergencia­is saíram do papel, há que se pensar agora nas agendas estruturai­s de recuperaçã­o econômica e social. A começar pela revisão da rede de proteção social, visando à redução da pobreza e ao apoio à população da base da pirâmide. A epidemia escancarou aquela que é nossa principal mazela e que deveria, a partir daqui, ser a prioridade primeira: a redução da nossa vergonhosa desigualda­de social.

Na sequência, e no mesmo tom, vem a reforma administra­tiva. Melhorar a qualidade dos serviços públicos não é só melhorar a alocação de recursos. Educação, saúde e segurança públicas de qualidade e maior eficiência da máquina salvam vidas, geram oportunida­des e aumentam a produtivid­ade. Isso ficou ainda mais claro agora que, infelizmen­te, tantas vidas foram perdidas e tantos empregos ficaram pelo caminho pela ineficiênc­ia de processos burocrátic­os, pela incapacida­de de execução e monitorame­nto das políticas desenhadas ou da falha em fazer o recurso chegar onde e a quem precisa. Há ainda a reforma tributária, corrigindo a regressivi­dade de uma taxação perversa, buscando eficiência e eliminando tratamento­s tributário­s diferencia­dos e de efeitos distributi­vos indesejado­s. Além dessas grandes reformas – e do inadiável atendiment­o à crise dos subnaciona­is, há um conjunto de microrrefo­rmas voltadas ao ambiente de negócios, ao fortalecim­ento institucio­nal e de contratos e à redução do Estado via privatizaç­ões e concessões que precisam avançar.

Não falta o que fazer, nem tampouco se ignora a direção. Mas o negacionis­mo presidenci­al, essa forma escapista de ignorar a realidade, tem nos feito perder tempo – e vidas. Fechar os olhos para os números da economia equivale a negar as evidências. Tão negacionis­ta – e irresponsá­vel – quanto vetar a obrigatori­edade do uso de máscaras em locais públicos ou dizer que é culpa dos governador­es os números que aí estão, é acreditar que a economia vai se recuperar sem que uma agenda clara de reformas seja colocada a público e pactuada com o Congresso e com a sociedade.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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