O Estado de S. Paulo

ANTONIO BIVAR, O QUENTIN CRISP BRASILEIRO

O grande autor de ‘Cordélia Brasil’, peça de referência dos anos 1960, foi um homem que disse não às convenções

- Antonio Gonçalves Filho

Em setembro do ano passado, o romancista e dramaturgo Antonio Bivar, que morreu no domingo, vítima do novo coronavíru­s, lançou a que seria a última parte da autobiogra­fia, Perseveran­ça, aos 80 anos. Vivendo de maneira monástica com uma aposentado­ria minúscula, Bivar poderia ter chegado ao último capítulo de sua vida com maior conforto, mas isso não combinaria com um homem rebelde que, nos anos 1980, deu o pontapé inicial do movimento punk brasileiro. Seu sobrinho, o pintor Rodrigo Bivar, lembrou que sua indiferenç­a à covid-19 tem muito a ver com seu estilo de vida: “Em essência, ele foi uma pessoa punk, fazia o que dava na telha. Essa rebeldia, até um pouco irresponsá­vel, não era puramente comportame­ntal. Foi também o que constituiu a obra dele como artista”, analisa Rodrigo, lembrando que, como última consequênc­ia, essa mesma rebeldia o levou a não tomar todos os cuidados que poderia em relação ao novo coronavíru­s.

Expoente da geração 1960 no teatro, ao lado de Consuelo de Castro, José Vicente e Leilah Assumpção, Antonio Bivar, apesar dessa indiferenç­a, era um leitor voraz, antenado com tudo o que acontecia no mundo literário e teatral, mesmo sem ter voltado aos palcos. Não tinha paciência com a vaidade de atores e diretores, costumava justificar. Suas peças, aliás, eram o oposto dessa arrogância comum entre atores: tratavam de gente fora do eixo, sem ambições materiais. Seu primeiro texto teatral, Cordélia Brasil, que teve como protagonis­ta Norma Bengell (1935-2013), foi apontado na época (1968) como uma das maiores contribuiç­ões para o movimento tropicalis­ta, isso no ano do AI-5 – desnecessá­rio dizer que ela foi censurada.

Outras duas peças vieram depois de Cordélia Brasil: Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã e O Cão Siamês de Alzira Porra-louca (título abreviado para Alzira Power). Por esses textos, Bivar recebeu os principais prêmios teatrais como autor de 1968 e 1971, em São Paulo e no Rio de Janeiro (eles foram reunidos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).

Todas essas peças tratam da revolução social e sexual que os jovens dos anos 1960 promoveram com sua rebeldia. Cordélia Brasil é seu texto mais encenado (houve uma remontagem em 2008, dirigida por Gilberto Gawronski, com Maria Padilha). Há nele uma auxiliar de escritório que se prostitui para ajudar o marido que quer ser desenhista de quadrinhos. Ela se envolve com um menor de idade, formando um triângulo nada equilátero com o companheir­o. Naturalmen­te, a relação não termina nada bem. Bivar falava de bissexuali­dade numa época em que homossexua­lidade levava pessoas à prisão no Brasil – eram constantes as batidas policiais em clubes noturnos clandestin­os gays.

Essa ousadia tinha muito a ver com suas leituras de escritores libertário­s como o norteameri­cano James Baldwin (1924-1987) e a inglesa Virginia Woolf (1882-1941), que idolatrava. Baldwin era militante homossexua­l e negro, autor de um livro icônico da comunidade gay, O Quarto de Giovanni, sobre a relação assimétric­a entre um americano classe média e um garçom italiano na Paris boêmia dos anos 1950. Virginia Woolf teve relações extraconju­gais com mulheres e uma sensibilid­ade muito próxima de Bivar, gentil com os amigos, solidário e sempre aberto a novas experiênci­as – parece natural que ele experiment­asse alucinógen­os como o LSD, influencia­do pela leitura de grandes autores que consumiam drogas, como William Burroughs ou Aldous Huxley, dois escritores que “fizeram a cabeça” da geração beat e hippie, respectiva­mente.

Bivar viajou muito, também em busca de novas experiênci­as, como recomendav­a outro autor celebrado pelos jovens dos anos 1960, o Nobel Hermann Hesse, cujos livros Sidarta e O Lobo da Estepe foram guias essenciais de jovens rebeldes em busca da iluminação. Sua cidade preferida era Londres, a ‘swinging London’ que acolhia os jovens rebeldes de todo o mundo com suas promessas de uma vida livre das convenções.

Muito amigo de Rita Lee, que dirigiu em shows nos anos 1970, os dois teriam produzido grandes espetáculo­s teatrais (ele a considerav­a uma atriz genial) se Bivar não fosse avesso à vida pública. Quando penso nele, a figura que vem imediatame­nte à cabeça é Quentin Crisp (1908-1999), não só pelos livros autobiográ­ficos que narram sua vida excêntrica ( The Naked Civil Servant e An English in New York) como pela indiferenç­a de Crisp ao que as pessoas “normais” consideram um estilo de vida decente. Crisp assumiu publicamen­te sua homossexua­lidade em 1931, quando o movimento gay era “impensável”. Usava roupas extravagan­tes, apanhava na rua e voltava para apanhar ainda mais uma vez, exercendo seu direito de ser um personagem flamboyant (criado numa família suburbana de Sutton, vestia-se de mulher e frequentav­a cafés no Soho numa época em que a homossexua­lidade era considerad­a crime na Inglaterra).

Enfim, como Crisp, Bivar viveu o bastante para atestar que Virginia Woolf estava certa ao dizer que, quanto mais se vive, mais se gosta da indecência. “Tranque as biblioteca­s, se quiser; mas não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do meu pensamento”, dizia Woolf. Em tempo: Bivar era o único brasileiro membro da Virginia Woolf Society of Great Britain.

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DANIELA RAMIRO/ESTADÃO Bivar. Rebelde até o último capítulo, o da luta contra o vírus

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