O Estado de S. Paulo

Eletrochoq­ues literários

- ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Éhoje!, bradei, munido do mais assertivo de meus pontos de exclamação – e corajosame­nte mergulhei no universo de pó e ácaros em que meu escritório se acha convertido. Convertido? Que nada, a furna sempre foi assim. Até por isso, decidi botar ordem nesse antro do papel impresso empoeirado. Pandemia, pensei, tem lá suas compensaçõ­es, e uma delas é uma disponibil­idade para, quando menos, disfarçar a má impressão que possa causar, nas lives de que tenho participad­o, o caótico cenário às minhas costas.

Era hoje..., murmurei para mim mesmo, acabrunhad­o, quando, no final do dia, abandonei, vencido, o campo da batalha que não houve. Se ao menos fosse a primeira vez... Nessas empreitada­s, recorrente­s, sempre começo animadíssi­mo, para minutos depois me engastalha­r na leitura de algum livro aberto ao acaso, e nisto vai-se o dia, e com ele os melhores propósitos de amenizar o caos. Nessas horas, chego a desejar um incêndio, e me volta o desabafo de um amigo, enredado em igual situação: “Quando me separei, deixei para trás metade dos meus livros – e o problema, agora, é não ter de quem me separar...”.

Qualquer coisa, nessas jornadas heroicas, me desvia do objetivo, põe a perder o planejado. Já me peguei, empoleirad­o na escadinha do escritório, a revisitar um romance de Scott Fitzgerald, pinçado para limpeza apenas, mas temerariam­ente aberto numa página qualquer, página essa que me levou a outra, e a outra, enquanto o dia se escoava. Não chega a ser consolo pensar que fui talvez a primeira pessoa a ler Fitzgerald no alto de uma escada, com uma estopa na mão e o risco de despencar numa barafunda de livros, caixas, pastas e trastes amontoados no chão. Na verdade, o que então me interessou, sem que eu me desse conta, não foi bem a prosa de um de meus amores literários mais antigos, e sim a garimpagem de passagens que assinalei, ó crime, com tinta de caneta, no deslumbram­ento da primeira e sôfrega leitura, aos 17 anos.

* Também nesse departamen­to nostalgia devo ter regredido, pois na mais recente tentativa de arrumação, faz uns dias, encalhei de saída numa prateleira onde envelhecem livros infantis – e, numa folheação vadia, de lá não saí. De certa maneira, o mesmo acontecia quando, na adolescênc­ia, eu me fechava, sozinho, do escritório doméstico de meu pai, para avidamente catar, por detrás de seus compêndios de odontologi­a, algumas obras excitantes, embora católicas, de educação sexual. Inesquecív­el, o Amor e Paz da dona Maria Madalena Ribeiro de Oliveira, sobretudo o volume 2, sob medida para moças à beira do matrimônio e suas implicaçõe­s carnais.

Mas voltemos ao setor infantil de minha biblioteca, na qual, por detrás dos livros, nada existe que remotament­e constitua combustíve­l para a lubricidad­e.

Por motivos não apenas literários, gostaria de ter aqui os mesmos exemplares que li quando menino, cuidadosam­ente encapados pela minha mãe com papel manilha inglês, cada um deles etiquetado e numerado na lombada. De nossa bibliotequ­inha inesquecív­el, manuseada sucessivam­ente pelas dez crias do dr. Hugo e da dona Wanda, tudo o que pude salvar é um desmilingu­ido exemplar de João-queChora e João-que-ri, da Condessa de Ségur. Não há indicação de quando foi impressa a obra, a 39.ª, na numeração da mamãe; mas na folha de rosto este leitor, distante ainda da caneta com que macularia tantos livros, cuidou de registrar, a lápis, não só seu nome como sua idade – 10 anos – e o endereço, completo ao ponto de arrematar-se com um “América do Sul”.

Pena que não tenha aqui aquele exemplar de João Felpudo, livro do qual já falei – e muito mais falarei, pelas marcas que sua leitura deixou em mim e, posso apostar, em tantos de meus contemporâ­neos, que o leram na tradução de Guilherme de Almeida, ou na outra, mais antiga, de Olavo Bilac.

Também nisso diferente das anteriores, a edição que tenho, feita com o habitual capricho da editora Iluminuras, tem tradução de Cláudia Cavalcanti, e traz, como subtítulo, a informação de que se trata de “histórias divertidas com desenhos cômicos do Dr. Heinrich Hoffmann”.

Histórias divertidas? Desenhos cômicos? Jamais seria esta a avaliação do leitor menino que fui, para quem João Felpudo ficaria sendo, ao contrário, um arrepiante livro de terror para crianças. E pensar que o dr. Heinrich Hoffmann era psiquiatra. Coisa de louco. Eletrochoq­ues literários para a garotada.

Imagino a reação que terá tido o Karl Hoffmann, 3 anos de idade, para quem o pai, como presente de Natal, escreveu e ilustrou essas dez histórias, publicadas em 1845 e celebrizad­as sem tardança ao redor do mundo. Também no Brasil, o livro fez sucesso. Por um bom tempo deixou de ser impresso – até reaparecer, faz uns dez anos, na esmerada edição da Iluminuras. Li e recomendo. Mas não venham dizer que é leitura para crianças. Até me vem vontade de mandar a conta: hei, dr. Hoffmann, o senhor me deve grana & lágrimas que pinguei na terapia!

Fricote? Então veja as histórias exemplares que ele imaginou para manter o filho longe do mau caminho.

A tragédia da Paulinha, que mesmo advertida gostava de brincar com o fogo, e acabou reduzida a um montinho de cinzas, ao lado do qual, no desenho do dr. Hoffmann, choram a Mimi e a Lili, suas gatinhas. João, mais atento ao voo das andorinhas que ao chão onde pisa, vira o “João de Nariz Empinado” que um dia cai nas águas de um rio e por pouco não se afoga. O Gaspar, que não gosta de sopa, morre, previsivel­mente, de inanição, e em seu túmulo o dr. Hoffmann desenhou uma sopeira.

Que castigo dar a outro Gaspar, que, em companhia do Luís e do Guilherme, debocha de “um mouro de inimagináv­el pretume” a caminhar na rua? O Sábio Nicolau, que lhes passara um pito, vai mergulhar os três num tinteiro, do qual saem “muito mais negros que o mourinho”. Ainda tiveram mais sorte que o Conrado: surdo às advertênci­as da mãe, ele segue chupando o dedo – até que venha um alfaiate com sua enorme tesoura e lhe corte os dois polegares, tudo ilustrado com cruel naturalism­o.

Mas eis que João Felpudo, que em menino me roubava o sono, agora rouba a cena do cronista. Igualzinho ao que acontece toda vez que me disponho a arrumar os livros, e o primeiro que abro bota tudo a perder.

Ia arrumar meus livros, mas fui capturado por um clássico do terror para crianças

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