O Estado de S. Paulo

Rosângela Bittar

- ROSÂNGELA BITTAR E-MAIL: RBITTAR200­7@GMAIL.COM ROSÂNGELA BITTAR ESCREVE SEMANALMEN­TE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Muitos não creem na mudança de Jair Bolsonaro ocorrida nos últimos 17 dias. É preciso tempo para o teste.

Muitos não creem na transforma­ção de Jair Bolsonaro ocorrida nos últimos dezessete dias, coincidind­o com o desvio que precisou fazer de dois alçapões armados no seu caminho: a prisão de Fabrício Queiroz e a busca, apreensão e quebra de sigilo de deputados amigos. Notou o presidente que o cerco era para valer e não estava adiantando gritar, ameaçar e intimidar. Era preciso calar para ganhar tempo, armar-se para resistir.

O silêncio se fez acompanhar de ações presidenci­ais típicas, como inauguraçõ­es, visitas a Estados atingidos por calamidade­s, comando sóbrio de reunião do conselho de ministros. A suspeita de que possa ser blefe, contudo, existe. Em pessoas com a sua idade e história política é mais seguro avaliar o que permanece. Por isso a pertinênci­a do teste sobre o que mudou.

Na postura com relação à política interna, tanto a permanênci­a quanto a mudança são mais visíveis. O canhestro solo de acordeão da Ave Maria, como fundo musical para a primeira manifestaç­ão de pesar, em seis meses, pelas milhares de mortes da pandemia, dispensa definições. Como não se vê comportame­nto racional, também, na integração, em pleno isolamento social, ao piquenique da data nacional dos Estados Unidos. Buscar o Centrão, oferecer cargos, dirigir esforços políticos à remontagem das relações com os poderes é mudança perceptíve­l mesmo que seja só para evitar o impediment­o.

Na política externa, porém, em que as transforma­ções precisam ser percebidas por estrangeir­os, sociedades de diferentes culturas, investidor­es mais bem cacifados do mundo, a terra é arrasada. Por isto mesmo está aí o teste de fogo das metamorfos­es do presidente. Para demonstrá-las teria de cumprir uma série de tarefas.

Restabelec­er a relação com a China, por exemplo, prioridade absoluta. Cassar o discurso gratuitame­nte agressivo, tarefa imediata. Os ataques não são inócuos: se a China levar a bom termo a procura de outro fornecedor de soja de nada adiantarão os esforços da ministra da Agricultur­a e o choro do agronegóci­o, que não suportará calado a debacle.

Urge, também, abandonar a insistênci­a na relação exclusiva com os Estados Unidos e voltar a ter a confiança de todos os parceiros com quem o País sempre se relacionou. Para manter aquela histórica amizade não é preciso adular ou rebaixar-se. Mimetizar, pior ainda, é tosco.

Ganhar condições de voltar a falar com a Europa, mesmo que o acordo com o Mercosul fique no telhado até o fim deste mandato, é necessário fazer, primeiro, uma medida elementar: demitir o ministro do Meio Ambiente. Em seguida, adotar uma política efetiva de combate ao desmatamen­to e aos incêndios amazônicos. Só depois tratar do protecioni­smo econômico que, certamente, aumentará seu peso nas negociaçõe­s comerciais do pós-pandemia.

Com o Oriente Médio, tudo começa na desistênci­a de transferir a embaixada em Israel para Jerusalém. Com a América do Sul, estabelece­r uma relação normal com o novo governo da Argentina e voltar a ter um canal direto com a Venezuela. Hoje, toda informação que o Brasil tem de Caracas é de segunda mão, um vexame.

Os votos na ONU, no que se refere aos direitos humanos e à proteção das minorias e vulnerávei­s, precisam de correção radical de rumo. Bem como o restabelec­imento das relações multilater­ais e as bilaterais com os países parceiros desde sempre. Sem poder econômico, militar e tecnológic­o, o País praticava intensamen­te o exercício do “soft power”, diplomacia dizimada pelo governo do presidente que isolou o Brasil do mundo.

O teste de mudança teria de apresentar resultados antes da eleição presidenci­al americana. Se Donald Trump vencer, Bolsonaro não deixará de ter como amigo pessoal o presidente dos Estados Unidos; se, ao contrário, vencer Joe Biden, é o Brasil que se dará melhor ao livrar-se do mau modelo, ficando livre para construir uma nova política externa.

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