O Estado de S. Paulo

A vida, o vírus e a política

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Nos tempos atuais, é preciso relembrar: não se deseja a doença de quem quer que seja. Política é arena de vida, não de morte.

Não se comemora doença de ninguém, por pior que possa ser seu desempenho público. Não se torce pelo faleciment­o de ninguém, por mais deletéria que seja sua conduta. São princípios básicos de civilidade e de respeito à dignidade humana, que não precisaria­m ser lembrados. São pressupost­os mínimos da vida em sociedade, sobre os quais não deve haver nenhuma dúvida. No entanto, nos tempos atuais, assustador­amente esquisitos, é preciso relembrar: não se deseja a doença, e muito menos a morte, de quem quer que seja. A política é – e deve ser – arena de vida, e não de morte.

Num Estado Democrátic­o de Direito, a oposição política, por mais ferrenha que possa ser, nunca almeja ou propõe a aniquilaçã­o do adversário. Assim, diante da notícia de que o presidente Jair Bolsonaro contraiu a covid-19, não há opção civilizada a não ser desejar o seu pronto restabelec­imento, com votos de que tenha os menores e mais leves sintomas possíveis. Tal atitude não é um favor ou privilégio que se concede ao presidente da República, masa única reação minimament­e humana diante da doença de outro ser humano.

Aluta política não entra nos domínios da morte, mesmo que o adversário político não tenha escrúpulos de se valer dessa seara. Por exemplo, quando era deputado federal,

Jair Bolsonaro transformo­u o fuzilament­o do então presidente Fernando Henrique Cardoso em verdadeira obsessão. Algumas das frases de Jair Bolsonaro: “O governo militar deveria matar pelo menos 30 mil, a começar por Fernando Henrique”, “o erro do governo militar foi não fuzilar o Fernando Henrique”, “defendo o fuzilament­o do presidente”. Depois,

Jair Bolsonaro alegou que “fuzilament­o” era força de expressão, o que, longe de servir de desculpa, ratifica uma mentalidad­e de barbárie e violência.

A mesma atitude pôde ser observada em entrevista de setembro de 2015. Questionad­o se a então presidente Dilma Rousseff concluiria o segundo mandato, até o final de 2018, Jair Bolsonaro respondeu: “Espero que o mandato dela acabe hoje, infartada ou com câncer, ou de qualquer maneira”. De enorme brutalidad­e, a declaração é absolutame­nte desproposi­tada, a revelar profunda incompreen­são não apenas do exercício da política, mas de cidadania e humanidade.

Quase cinco anos depois dessa declaração sobre Dilma Rousseff, o País tomou conhecimen­to de que o menosprezo de Jair Bolsonaro em relação à vida não era circunscri­to a adversário­s políticos. A pandemia do novo coronavíru­s revelou um presidente da República capaz de submeter a saúde da população a interesses e cálculos políticos, fosse qual fosse o número de vidas que a doença poderia ceifar. Entre estupefata e incrédula, a população ouviu o “e, daí?” de Jair Bolsonaro, em relação às dezenas de milhares de óbitos pela covid-19.

A confirmar sua indiferenç­a com a saúde pública, no mesmo dia em que recebeu o diagnóstic­o positivo para o novo coronavíru­s, Jair Bolsonaro difundiu desinforma­ção sobre o uso de hidroxiclo­roquina no tratamento da covid-19. Contrarian­do as evidências médicas, o presidente Bolsonaro atribuiu a ausência de sintomas mais graves da doença ao uso do medicament­o que, além de não ter eficácia comprovada, apresenta efeitos colaterais graves. Como se vê, o inquilino do Palácio do Planalto é contumaz na falta de limites.

No entanto, por mais que causem repugnânci­a, as atitudes de Jair Bolsonaro em relação à vida, ao vírus e à política não autorizam outra expectativ­a que o imediato restabelec­imento da saúde do presidente da República. Fazer oposição política não inclui adotar as atitudes do adversário. Se o bolsonaris­mo manifesta, com estonteant­e clareza, seus antivalore­s, a reação contrária não pode ser mero sinal invertido. Não se combate autoritari­smo com desumanida­de. Num país civilizado, não se enfrenta barbárie pregando a barbárie.

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