O Estado de S. Paulo

Quem somos nós e por que lutamos

- ✽ José Serra ✽ SENADOR (PSDB-SP)

Uma iniciativa de opositores às aspirações autoritári­as do atual presidente busca inspiração no movimento das Diretas-já, de 40 anos atrás. Episódios históricos são sujeitos a revisões e reversões de seus fatos e significad­os ao longo de décadas e séculos.

Mesmo aqueles que, como eu e muitos de minha geração, participar­am ativamente do movimento terão versões particular­es do que viram e ouviram contar. Gostaria de compartilh­ar aqui lições que pude aprender com base em meu testemunho pessoal e nos conhecimen­tos das ciências sociais.

O movimento das Diretas não foi apenas um tipo de movimento coletivo, agrupament­os que se movem ao mesmo tempo, sem objetivo preestabel­ecido, não necessaria­mente de modo convergent­e, nem no mesmo espaço, e sem um desfecho previsto. O DiretasJá foi mais do que isso: um movimento social, definido pelo sociólogo francês Alain Touraine – grande amigo e estudioso do Brasil e da América Latina – como um movimento coletivo com objetivo claro, com adversário definido e senso de identidade. Em suma: quem somos nós, por que lutamos e contra quem.

Parece claro que nem os diversos movimentos coletivos em nosso passado recente, nem mesmo grande número de partidos políticos, têm clareza sobre essas dimensões, que, idealmente, deveriam ter presidido sua criação.

O Diretas-já teve um alvo imediato bem definido, a aprovação do projeto de emenda constituci­onal do deputado federal Dante de Oliveira que aboliria a eleição indireta do presidente da República por um colégio eleitoral criado sob medida para eleger quem o regime escolhesse. Era uma ideia com grande apoio popular, mas uma ideia só não faz verão, e a oposição não tinha votos suficiente­s (dois terços das duas Casas do Congresso Nacional, na época) para aprovar aquela emenda.

Três fatores transforma­ram essa ideia em movimento social. Em primeiro lugar, nos dez anos precedente­s formou-se um grande movimento de ideias. Intelectua­is, editoriali­stas, artistas, lideranças dos mais diversos matizes, políticas, sindicais, religiosas, martelavam diuturname­nte, nos meios de comunicaçã­o tradiciona­is e alternativ­os, o princípio da primazia da sociedade civil sobre o regime autoritári­o, da legitimida­de das instituiçõ­es democrátic­as e da representa­ção popular.

Isso deixou claro “quem somos nós” (a sociedade civil) e “contra quem lutamos” (o governo militar). Inicialmen­te, o ideal por que lutávamos era pontual: devolver à sociedade civil o direito de eleger o presidente da República.

Outro fator foi a liderança política assumida pelo governador Franco Montoro, do Estado de São Paulo, o mais poderoso da Federação, que propiciou a mudança de patamar de manifestaç­ões restritas para um movimento político com uma estratégia de poder. Com isso foi possível reunir a capacidade de mobilizaçã­o popular de praticamen­te todos os governador­es e dominar as ruas em todo o País. O mais importante, entretanto, é que, quando o movimento foi derrotado – por não ter alcançado o quórum constituci­onal –, o ideal do movimento se transformo­u, de restaurar o voto popular direto para conquistar o poder, mesmo disputando dentro das regras impostas pelo regime. Ou seja, nós, a sociedade civil, lutamos para conquistar o poder político, contra o regime autoritári­o e tudo o que ele representa.

Essa nova razão de ser do movimento – conquistar o poder político, e não apenas mudar as regras do jogo – acrescento­u outra dimensão: o princípio das concessões mútuas. Para conquistar a vitória no colégio eleitoral a oposição teria de conquistar votos entre os adversário­s, a fim de que seu candidato fosse eleito.

Essa opção não foi aceita por alguns governador­es e líderes partidário­s, particular­mente do PT, que recusavam disputar o poder “dentro das regras da ditadura”, porque reconhecia­m, até com razão, que sua chance de vitória seria disputando eleições diretas. O maior partido do Congresso e em número de governador­es, o PMDB, contava com três fortes candidatos capazes de reunir a condição sine qua non para ganhar o pleito indireto, isto é, serem aceitos pela Frente Liberal, dissidênci­a do partido do governo, e aceitarem os moderados do governo como aliados para o pleito. Eram eles o grande articulado­r das Diretas-já, Franco Montoro, o líder inconteste da oposição, Ulysses Guimarães, e Tancredo Neves, cujas inclinaçõe­s moderadas seriam mais aceitáveis para a Frente Liberal.

Montoro propôs a Ulysses que ambos renunciass­em à candidatur­a por ser Tancredo mais viável para compor a chapa com José Sarney, líder da Frente, que acabara de renunciar à presidênci­a do partido do governo.

O movimento das Diretas não fracassou quando derrotado em seus objetivos iniciais. Adotou uma estratégia de poder, com definição clara de sua identidade e do adversár i o, e criou uma maioria, atraindo os mais moderados entre os adversário­s.

Enquanto os não radicais da classe política e da sociedade civil continuare­m fragmentad­os entre radicais dos dois lados e não adotarem um estratégia convergent­e de poder, continuare­mos a marcar passo.

Com os não radicais fragmentad­os, só vamos continuar a marcar passo

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