O Wilson Center mudará de nome?
Essa é a pergunta que me fizeram colegas e amigos depois que a Universidade de Princeton decidiu, em meio à comoção nacional causada no mês passado pelo brutal assassinato do negro George Floyd pela polícia de Minneapolis, remover o nome de seu mais famoso professor, reitor e, mais tarde, presidente dos Estados Unidos do frontispício de sua prestigiosa escola de assuntos públicos e internacionais, por causa das convicções e ações racistas do antigo mestre, incluindo a segregação racial dos servidores públicos.
Entre setembro de 2006 e março passado dirigi o Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, o memorial nacional criado pelo Congresso dos Estados Unidos em outubro de 1968 – seis meses depois, pasmem, do assassinato do reverendo Martin Luther King, o grande líder do movimento dos direitos civis, santo cívico dos EUA e o único herói americano celebrado com um feriado nacional exclusivo. Não foi certamente o racismo de Wilson que motivou Princeton e o Congresso a homenageá-lo.
Pioneiro do estudo da ciência política e um dos primeiros doutores da academia americana, Wilson foi o principal arquiteto da Liga das Nações, criada ao final da guerra de 1914-1918 como veículo institucional de uma paz duradoura. A iniciativa valeu-lhe o Nobel da Paz em 1919 e ajudou a legitimar a ascensão da jovem nação a potência mundial guiada pelo multilateralismo, conceito que ele desenvolveu e usou para projetar o poder dos EUA, com o consentimento dos países amigos e aliados. Vêm daí a Organização das Nações Unidas (ONU) e as instituições do pós-2.ª Guerra, das quais o Brasil é membro fundador, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Hemisfério Sul, nenhum país cultivou tanto como o Brasil o legado positivo de Wilson. Em 1944 o ditador Getúlio Vargas deu seu nome a uma das grandes avenidas da então capital do País e adotou o multilateralismo como viga mestra de sua diplomacia – até dois anos atrás, quando esta foi reduzida à boçalidade atual.
Em casa, o legado do governo Wilson (1913-1921) inclui a criação do Federal Reserve, o banco central dos EUA, e da Federal Trade Commission, instituições que deram estabilidade e lastro à prosperidade do país nos últimos cem anos. A Wilson credita-se, ainda, a modernização da presidência e de seus rituais. Foi ele que, no início da era do cinema, começou a transformar a política em espetáculo, mudando o lugar da “inauguration” – a tomada de posse do presidente – para a fachada leste do prédio do Congresso, voltada para a grandiosa esplanada, ou Mall, onde estão os monumentos e museus que comemoram a diversidade e riqueza cultural da nação.
Na cenografia do poder de Wilson não couberam, porém, os descendentes dos cerca 950 mil escravos africanos que sobreviveram à travessia do Atlântico ao longo dos mais de três séculos do tráfico negreiro. (Ao Brasil chegaram vivos pelo menos três vezes mais escravos, dado ainda mais espantoso quando se tem em mente que metade dos traficados morria na viagem.)
A iniciativa da criação de um memorial nacional para celebrar o legado do 28.º ocupante da Casa Branca partiu do presidente John F. Kennedy e foi operada, no final dos anos 1960, pelo senador Daniel Patrick Moynihan, economista republicano e professor de Harvard que virou democrata. Ironicamente, os estudantes e professores de Princeton que baniram Wilson da universidade são aliados de Donald Trump no que toca a Wilson. O atual presidente zerou o orçamento do Wilson Center três anos seguidos. O Congresso manteve e aumentou a dotação, de US$ 10 milhões para US$ 14 milhões. A decisão dos parlamentares mostra não há apetite em Washington para extinguir o Wilson Center. Se houvesse, seria inevitável perguntar por que parar o revisionismo histórico em Wilson. George Washington, Thomas Jefferson e outros “pais da pátria” foram proprietários de escravos na Virgínia, terra natal também de Woodrow Wilson.
Jefferson é o autor da Declaração da Independência, segundo a qual “os homens nascem como iguais” e são dotados pelo Criador de “direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. A felicidade de Jefferson incluiu amar uma de suas escravas, Sally Hemings, que lhe deu pelo menos quatro filhos. Lucian K. Truscott IV, descendente em linha direta de Jefferson, defende a remoção do Mall do memorial que celebra seu ancestral. Novelista e colaborador da revista Salon, Truscott escreveu no New York Times que o lugar deveria ser reconstruído como memorial a Harriett Turbman, líder abolicionista negra que operou uma rede clandestina durante a Guerra Civil que facilitou a fuga para o norte de milhares escravos das plantations do sul. O retrato de Tubman substituirá em breve o do escravocrata Andrew Jackson, o sétimo presidente, nas notas de 20 dólares.
Desde o assassinato de George Floyd, estátuas de vários generais perdedores da Guerra Civil, que tornou ilegal a escravidão, foram recolhidas aos depósitos dos museus.
Comoção nacional causada pelo assassinato de George Floyd leva a revisionismo histórico