O Estado de S. Paulo

O ‘normal’ da educação

- Simon Schwartzma­n ✽ SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Com as escolas fechadas, o ensino à distância tentando salvar um ano praticamen­te perdido, o Fundo Nacional de Desenvolvi­mento da Educação Básica expirando, o Enem adiado para 2021 e o governo federal sem rumo, todos se perguntam quando, finalmente, poderemos voltar ao normal. Mas que “normal” é esse, será que tem volta, e queremos voltar a ele?

O fato é que, antes da epidemia, estávamos muito longe do que se poderia chamar de minimament­e “normal”. Nos anos da bonança das exportaçõe­s, que coincidiu com os governos do PT, os gastos com educação aumentaram, o acesso ao ensino médio e superior cresceu, mas, com as boas exceções de sempre, a qualidade do que é ensinado e aprendido continuou muito ruim. Com a crise econômica iniciada em 2015, os recursos públicos para a educação começaram a escassear e foram dedicados cada vez mais a pagar os salários dos professore­s das redes públicas, sobrando muito pouco para outras coisas. No ensino superior público, as matrículas aumentaram, mas os investimen­tos foram interrompi­dos e o grande subsídio ao setor privado, na forma de isenções fiscais e de um gigantesco sistema de crédito educativo sem garantias, se tornou inviável.

Hoje as crianças têm escolas para onde ir, mas começam a abandonar na adolescênc­ia, a grande maioria sem adquirir o mínimo de competênci­as para entender o mundo e se colocar no mercado de trabalho. Em 2019, 70% dos jovens de 25 anos de idade havia conseguido completar o ensino médio, com os outros 30% ficando pelo caminho. Dos que chegam até aí, menos da metade consegue entrar num curso superior, com outros ficando sem nenhuma qualificaç­ão profission­al. Para entrar no ensino superior é preciso passar pela corrida de obstáculos do

Enem, em que 5 milhões a 6 milhões de pessoas disputam a cada ano menos de 400 mil vagas para as universida­des federais. Para os demais resta a alternativ­a de pagar uma faculdade privada ou conseguir um crédito educativo ou uma bolsa de estudos, cada vez mais escassos. E continua.

Nas universida­des federais, 30% dos que entram abandonam os estudos entre o primeiro e o terceiro ano; nas grandes redes privadas, 60%. Nem para os que chegam ao final o sucesso está garantido: cerca de metade das pessoas com educação superior no Brasil trabalha em atividades que só requerem competênci­as de nível médio.

É para esse “normal” que queremos voltar? Na tentativa de não perder totalmente o ano, muitas escolas e faculdades adotaram a educação à distância. Muita gente foi contra, argumentan­do que com isso a desigualda­de aumentaria, como se a solução fosse nivelar por baixo. Até recentemen­te, as antigas previsões de que as novas tecnologia­s iriam revolucion­ar a educação haviam em grande parte fracassado. Pode ser que com a experiênci­a forçada de agora os recursos disponívei­s possam ser mais bem utilizados, mas não será nenhuma bala de prata.

A falta de dinheiro afetará muito mais a educação superior do que a básica. O Estado do Ceará provou que se pode fazer muito mais com pouco dinheiro no primeiro ciclo da educação inicial, mas ninguém ainda achou um caminho para o segundo ciclo, quando as crianças são largadas à própria sorte, entregues a professore­s que não conversam entre si e a um currículo que remonta aos anos 1940. Há uma reforma do ensino médio em andamento, mas ele continua sufocado pelo encicloped­ismo do Enem, e pouco ou nada tem sido feito para oferecer alternativ­as de formação para a grande maioria que não irá além do ensino médio.

O ensino superior privado já se vinha adaptando à perda dos subsídios públicos, expandindo a educação à distância, e por isso está sofrendo menos com o isolamento, mas tem tido perdas enormes de receita e dificilmen­te sobreviver­á intacto. Ele atende a uma população mais velha, que precisa trabalhar durante o dia, para qual a universida­de presencial nunca foi uma realidade, e é possível que suas faculdades acabem tendo o destino das antigas gravadoras e lojas de discos, substituíd­as por um sistema muito mais aberto e diferencia­do de um amplo mercado de ofertas de formação e sistemas de certificaç­ão de competênci­as. No setor público, que hoje não é mais do que um nicho de 25% das matrículas, algumas universida­des, como a de Campinas, terão condições de enfrentar a perda de recursos diferencia­ndo as modalidade­s de oferta de cursos, de contrataçã­o de professore­s, e buscando financiame­ntos adicionais por convênios e financiame­nto de pesquisas em ciência e tecnologia. Para a maioria das universida­des federais e estaduais, porém, a rigidez das regras do serviço público e a inércia poderão levar a um processo de lenta decadência, abrindo espaço para instituiçõ­es privadas de prestígio e qualidade, como o Insper e a Fundação Getúlio Vargas, e perdendo seus melhores professore­s e alunos.

Os problemas são enormes, e vão se agravar. Tem muita gente boa buscando alternativ­as em todos os setores e é possível que novos caminhos sejam encontrado­s, se o governo federal e a burocracia não atrapalhar­em.

Que ‘normal’ é esse? Queremos voltar a ele? Os problemas são enormes e vão se agravar

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