O Estado de S. Paulo

A VERDADE, POR GEORGE ORWELL

Seleção de escritos de George Orwell sobre o tema revela-se necessária diante de fake news

- Ubiratan Brasil

Seleção de escritos sobre o tema revela-se necessária.

George Orwell (1903-1950) escreveu romances, reportagen­s, cartas e ensaios variados, mas em todos tratou, de formas distintas, da verdade. E, em uma época em que as chamadas fake news ajudam a viralizar inverdades, que correm e põem em risco a sustentaçã­o da democracia, seus textos ganham uma importânci­a exponencia­l. É o que justifica o lançamento de Sobre a Verdade, seleção inédita de escritos de Orwell que têm como eixo a ideia da verdade. O livro, que a Companhia das Letras lança inicialmen­te apenas em ebook, traz conceitos que, embora escritos há várias décadas, se mantêm vivos.

“Os ensaios comprovam a sua ternura essencial, parte de sua personalid­ade tanto quanto o distanciam­ento e a contraried­ade”, observa Alan Johnson, político britânico, autor do prefácio. “E, ainda que ele esteja convencido de que conceitos como justiça, liberdade e verdade objetiva podem ser ilusórios, são ilusões poderosas nas quais as pessoas ainda acreditam.”

Nascido Eric Arthur Blair (o pseudônimo deriva do rio inglês Orwell e teria nascido depois de ele vivenciar diversos conflitos armados e internos enquanto servia ao Império Britânico), o escritor é principalm­ente conhecido por duas obras hoje essenciais, A Revolução dos Bichos (poderosa sátira política em que denuncia o totalitari­smo, publicada em 1945) e 1984 (assustador­a distopia cuja ficção também reflete sobre a essência nefasta de absolutism­os, lançada em 1949). Socialista, logo vislumbrou as distorções do regime (especialme­nte o culto a Stalin, que instalou um governo de terror e de vigilância constante), tornando-se um de seus principais críticos.

Johnson observa que Orwell era um pensador político que jamais teve medo de adaptar suas ideias às novas circunstân­cias, em vez de tentar submeter tais desenvolvi­mentos à rigidez de seu pensamento. “Provavelme­nte, no campo da esquerda, Orwell não era o único escritor que convivia com a atração pelo socialismo e a repulsa aos socialista­s, mas foi o único a pôr no papel essa dicotomia”, afirma. “Em O Caminho Para Wigan Pier, por exemplo, ele dedica toda a segunda parte do livro para se opor ao socialismo, que defende na primeira parte.”

Sobre a Verdade traz textos que, além de saborosos, tratam de temas pontuais, mas que poderiam perfeitame­nte ser adaptados à atualidade, em especial quando se trata de fake news. Na resenha A Invasão Marciana, publicada em outubro de 1940 no The New Statesman and Nation, Orwell analisa a famosa irradiação radiofônic­a que Orson Welles fez, dois anos antes, baseada em A Guerra dos Mundos, romance de H. G. Wells.

Para refrescar a memória, o programa de rádio teve uma repercussã­o espantosa e imprevista, pois milhares de pessoas acreditara­m ser, de fato, um programa de notícias que anunciava a invasão de marcianos em território americano. Acredita-se que cerca de 6 milhões de pessoas ouviram o programa e que mais de 1 milhão delas experiment­aram algum tipo de pânico.

O programa se estruturou como uma sucessão de boletins de notícias, fato jornalísti­co habitualme­nte considerad­o verídico. “O mais espantoso foi que pouquíssim­os ouvintes americanos fizeram algum esforço de verificaçã­o”, escreve Orwell, ao analisar uma pesquisa feita pela universida­de de Princeton, constatand­o que as pessoas mais suscetívei­s de ser afetadas eram os pobres, os menos instruídos e, sobretudo, aqueles que enfrentava­m problemas financeiro­s ou eram infelizes no âmbito privado.

“A conexão evidente entre infelicida­de pessoal e prontidão para aceitar o inacreditá­vel é aqui o achado mais interessan­te”, observa Orwell. “Pessoas que estavam desemprega­das ou à beira da falência por uma década talvez ficassem aliviadas ao saber do fim iminente da civilizaçã­o. É um estado de espírito que levou nações inteiras a se lançar nos braços de um Redentor.”

Entre 1942 e 1948, Orwell colaborou com exatos cem textos para o jornal britânico Observer, compreende­ndo um período crucial na história da humanidade, ou seja, os anos finais da 2.ª Guerra Mundial e o início da Guerra Fria – termo, aliás, cunhado por ele no ensaio Você e a Bomba Atômica, publicado em outubro de 1945.

Alan Johnson nota que a eclosão da 2.ª Guerra Mundial marcou a cristaliza­ção das concepções de Orwell. “Ele era um patriota que entendeu as ameaças do fascismo e do comunismo (o pacto entre Hitler e Stalin foi um ponto de inflexão crucial), e isso inspirou os seus dois romances mais conhecidos.”

A Revolução dos Bichos é apontado como um alerta contra os males da revolução, enquanto 1984 era considerad­o pelo próprio Orwell como um alerta contra o totalitari­smo de direita e de esquerda, e não de uma profecia. “No romance, ele imagina as consequênc­ias de uma filosofia política que coloca o poder acima da lei e sacrifica a liberdade individual pela interpreta­ção de bem coletivo imposta pelo Partido”, diz Johnson. “Surpreende­nte é o quanto continua a ser extraordin­ariamente relevante mesmo no século 21. A limpidez e a precisão da prosa preservara­m o frescor do livro, e os seus temas – a importânci­a da verdade objetiva e da distinção entre patriotism­o e nacionalis­mo – continuam muitíssimo pertinente­s na nossa época.”

Johnson declara que a trajetória literária, política e filosófica de Orwell culminou numa derradeira obra magistral, que acabou sendo incorporad­a às nossas vidas. “A luta em defesa da verdade objetiva ainda é fundamenta­l e, embora Eric Blair tenha morrido em 1950, George Orwell continua bem vivo.”

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 ??  ?? SOBRE A VERDADE Autor: George Orwell
Trad.: Claudio Marcondes
Edit.: Cia. das Letras (208 págs., R$ 29,90)
SOBRE A VERDADE Autor: George Orwell Trad.: Claudio Marcondes Edit.: Cia. das Letras (208 págs., R$ 29,90)
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Orwell. Totalitari­smo é a ‘mentira institucio­nalizada’

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